sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

A boemia é uma caixinha de surpresas


Certa madrugada, perambulava eu, àquela altura já sozinho e bastante alccolizado, pelas ruas paulistanas, rumo a minha casa. Para quem gosta do esporte, sabe que é preciso fazer uma escala volta e meia, para reabastecer. Uma porta me pareceu convidativa e, após tropeçar num cachorro que quase me mordeu, vi-me num legítimo pub, penumbroso e enfumaçado. Sentei-me ao balcão, pedi um pint de cerveja e saquei do bolso um cigarro. Procurava um isqueiro nos bolsos, quando uma chama apareceu à minha frente. Sem me importar com sua origem, encostei a ponta do cigarro nela, traguei, tirei o cigarro da boca e me virei para agradecer. A figura ao meu lado surpreendeu-me. Um senhor aparentando seus 70 anos, um pouco menor que meu metro e sessenta, barbas brancas desgrenhadas, rosto vermelho, metido num paletó surrado, ostentava um sorriso embriagado que revelava dentes mal cuidados e um olhar ainda mais simpático do que seu gesto de oferecer a chama de seu isqueiro de ouro.

O velhote estendeu sua mão enrugada para mim e pronunciou seu nome, Labraid Beadan, que demorei alguns minutos para entender e umas 5 repetições ao longo das horas para fixar. Mais tarde, contaria seu significado: “Falador Pequeno”, o que, depois de meia hora de quase monólogo, não seria difícil entender. Contou-me ser de Dublin e ter chegado a São Paulo em plena greve da Light, após ter vindo a Santos clandestino em um navio. Perguntei se viera fugindo da guerra de independência e ele, com um sorriso a princípio constrangido e em seguida muito brejeiro, contou que após visitar uma adega com amigos em Cork, acordou no porão de um navio, com uma ressaca de matar. Revelou ainda que um marinheiro afirmou ter tirado ele de dentro de um barril de irish cream, que misteriosamente estava seco. Recusou-se a dizer sua idade.

Começamos conversando sobre literatura irlandesa e eu, que não sou grande conhecedor dela, me impressionava com a intimidade com que Beadan tratava monstros sagrados da literatura (Jimbo Joyce, Sammy Beckett,...). Com a maestria de um professor e a intimidade de um grande mentiroso, destrinchava livros altamente complexos com frases simples e relatos pessoais (“Esse O'Connor, de Dublinenses, foi inspirado num sujeito que vivia bêbado e pagando de agitador político...”). Ao menor sinal de puxa-saquismo de minha parte, como perguntar como uma ilha de 4 milhões de habitantes tinha tantos grandes escritores, desdenhava de mim e de seu país, numa auto-ironia que deixava transparecer grande amor à terra natal. Contei-lhe que tinha bebido todo o meu dinheiro e respondeu que não me preocupase com isso. Tirou uma enorme moeda de prata da pequena bolsa que trazia e pediu mais duas, gesto que repetiria muitas e muitas vezes, para meu espanto, que não via de onde poderiam sair tantas moedas.

Perguntei-lhe se mantinha contato com a Irlanda e ele surpreendeu-me ao dizer que a cada poucos anos viaja para lá, além de acompanhar pela internet o desempenho de seu time. Quis saber que time era e ele, me olhando como se eu tivesse perguntado se ele era homem ou mulher, respondeu, “O Bohemian, ora”. Naquele momento notei que o futebol irlandês era uma incógnita, ao contrário de sua brava seleção. Meus olhos blogueiros se animaram e pedi-lhe que me contasse sobre o time e o futebol irlandês enquanto meus olhos boêmios se animaram com o nome do time e pedi mais uma cerveja ao garçom.

O Bohemian Football Club, disse-me Beadan, é o primeiro time de futebol da Irlanda, fundado em 6 de setembro de 1890 no Phoenix Park, noroeste de Dublin, por funcionários públicos, estudantes de medicina, notórios paus-d’água e um gato. Na reunião de fundação, num pub cujo nome não lembrava (“Freqüentávamos tantos” – justificou), houve polêmica sobre o nome: os funcionários públicos e estudantes queriam chamar o time de Rovers, mas a maioria, incluindo o presidente Dudley Hussey, que deu seu voto de minerva, apoiou a proposta de Frank Whitaker (pé-de-cana que depois se regenerou e ingressou na Ordem de São João de Deus) de chamá-lo Bohemian, por causa da constante deambulação dos componentes da equipe à procura de bares abertos e campos onde pudessem jogar bola.

O símbolo – mostrou-me Beadan, orgulhoso, em sua carteirinha – são os tradicionais 3 castelos que representam o zelo dos cidadão na defesa de Dublin. As cores, desde 1893, vermelho e preto. Até 1901, o clube mudou-se algumas vezes, o que lhe rendeu o apelido de The Gypsies, Os Ciganos. No verão desse ano (verão irlandês, bem entendido), o grande boêmio William John Sanderson, após noite animada num cabaré, acordou ao relento com um gato – o mesmo que fundou o time – lambendo-lhe a face num enorme descampado perto da linha do trem. Após praguejar, jurar que nunca mais voltaria a beber, levantar e dar alguns passos cambaleantes tentando entender onde estava, resolveu ir a um pub onde certamente encontraria alguns amigos de time e comunicou-lhes haver encontrado o lugar perfeito para a casa dos Bohemian. Após um brinde e algumas saideiras, foram todos para o descampado, seguindo o gato, porque Sanderson não lembrava o caminho. Ali, em setembro, nasceria o Dalymount Park. Em 1921, em decorrência da secessão entre as Irlandas, a IFA (Ireland Football Association) virou a associação de futebol do Norte e foi criada a FAI (Football Association of Ireland). Dalymount Park era o melhor campo da república e tornou-se a casa da seleção nacional até os anos 70, quando a FAI resolveu sediar os jogos num estádio de rúgbi, com maior capacidade (Lansdowne Road). Nesse enorme meio tempo, após anos de fartura, lá pelos anos 60 os Bohs enfrentaram uma enorme crise financeira por causa dos custos de iluminação do estádio. Para tentar sair do vermelho, iniciou-se em 1969, o processo de profissionalização da equipe. Nos anos 70, o time reencontrou o caminho dos títulos e depois encarou novo jejum nos anos 80 e 90 (exceto por uma Copa FAI). Beadan afirmou que ganhar ou não títulos era o de menos, que o que valia era o espírito boêmio. Perguntei-lhe o que restava desse espírito e ele, para minha surpresa, afirmou que o gato, por exemplo, conhecido como Dalymount Cat, segue acompanhando os jogos no estádio. Além disso, citou um amigo em Dublin, cujo bar, destruído por hooligans, foi reconstruído após uma vaquinha dos torcedores. Revelou ter tentado intermediar a ida de Sócrates para o clube, quando ainda estudava medicina, mas preferiu não entrar em detalhes – observando apenas, ambiguamente, que as negociações foram um porre.

Perguntei-lhe sobre a torcida. Contou-me ainda que, além de beber, os Bohs gostam de bom futebol e enchem o saco do time quando está jogando mal. Insisti para saber se havia alguma tendência política ou religiosa predominante e, pela única vez na noite, Beadan se irritou, afirmando que a divisão de seu país em dois passava ao mundo essa impressão de que tudo o que existe lá é uma eterna disputa entre católicos e protestantes. Ainda alterado, afirmou que os torcedores apenas escolhem os times que lhes parecem mais simpáticos, que tinha ódio da imagem hollywoodiana de irlandeses brigões e bêbados. Pediu outra e se acalmou. Defendeu ainda que a divisão entre norte e sul, afora toda a questão político-religiosa, se deve ao interesse inglês em não tomar mais cacetes no futebol, pois se, por exemplo, George Best fosse simplesmente irlandês e não norte-irlandês, o futebol de seu país seria muito superior ao da Inglaterra.

A essa altura, Labraid perguntou para que time eu torcia e comentou, sarcástico, que os Gypsies nunca foram rebaixados. Disse ainda que a situação atual do clube é animadora, que um novo estádio está sendo erguido e o clube se orgulha de ser propriedade integral de seus sócios, bastando, para se associar, a indicação de 2 outros sócios e aprovação na assembléia geral. Previu que em breve, com o ciclo virtuoso na economia irlandesa, alguns jogadores brasileiros poderiam vestir a camisa rubro-negra, após a saída do grande ex-vascaíno André Borges (comentário meu: quem???).

De repente, levantou-se e disse que precisava ir. Convidou-me para ir a Dailymount Park enquanto é tempo, foi até a porta, virou para trás e me chamou com um gesto. Fui até lá e ele me disse que eu podia ficar tranqüilo quanto a toda a minha bebida. Antes que eu tivesse tempo de dizer “ã?”, virou-se de novo, montou no cachorro que continuava à porta e partiu de vez, deixando para trás outro boêmio.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Muito Além do Frango de Barbosa

Descobri que a campanha de Barack Obama tem um aliado sobrenatural.

Tramando pela vitória do senador de Ilinóis está ninguém menos do que a perturbada alma do velho Barbosa, um dos grandes jogadores da história do Brasil.

Sei disso porque, recentemente, depois de ouvir um conhecido de longa data afirmar ceticamente que não há mais racismo no futebol brasileiro, visitei o terreiro de vovó Candinda e invoquei o espírito do injustiçado arqueiro da Copa de 50.

Para quem não se lembra ou nunca ouviu falar, o bom Barbosa aceitou uma bola que decidiu o Mundial, na tragédia do Maracanazo, sendo então crucificado por toda a imprensa brasileira - boa parte dela discriminando-o pela cor de sua pele.

Sem negar que saiu de campo com as penas na mão, a alma “penada” do famoso goleiro possui a preta velha e saiu atirando nos jornais da época: “Barbosa vergonhoso”, chegou a publicar em negrito um jornal reacionário. “Jair covarde, desapareceu perante a marcação de Obdulio Varela”, “Bigode, jogador irresponsável” e por aí vai. Mesmo depois de apagadas atuações de Zizinho, Bauer e Juvenal no segundo tempo, os periódicos atiraram a culpa da derrota em cima dos atletas negros e mestiços.

Saí do terreiro com a cabeça voltada em escrever uma crônica sobre a falta de respeito com os craques negros daquela Seleção. Mas o altruísta espírito de Barbosa continuou a me seguir e, onde quer que eu fosse ele estava lá, tentando me convencer de que não é um mártir, que eu deveria esquecer seu exemplo de vida e me concentrar em questões atuais.

Entre uma e outra aparição, Barbosa diz estar muito entristecido por não ter defendido o chute de Ghiggia e, mais ainda por presenciar do além-túmulo as manifestações racistas que insistem em assombrar o nosso futebol.

Ele, que nasceu numa época em que a discriminação racial tinha respaldo institucional e as circunstâncias do racismo no futebol eram dignas do sul do Mississipi, anda por aí, errante, onipresente e desfrutando dos privilégios de um mundo anti-material.

Sua força vital perambula (emitindo vibrações poderosas) sempre alerta, orientando espiritualmente os militantes negros do mundo inteiro, apreciando a cultura Hip-Hop, trabalhando como ativista engajado de Obama e se relacionando com outras almas perdidas, como a de Martin Luther King, com a qual discute as diretrizes cósmicas das posições políticas.

Em sono profundo, escrevi uma centena de notas sobre o tema ensejado, provavelmente sob a influência energética de Barbosa. Hoje, mergulhado em anotações que sequer possuem os traços de minha letra, vejo-me no dever de citar, na condição de um mero instrumento, algumas das posições firmes do ex-goleiro:

“... Infelizmente, se vende a imagem de que no Brasil o preconceito está desaparecido, ou então anda definhando, agonizando tão desprestigiado que, inclusive, anda sofrendo de preconceito...”.

“... No Brasil onde todos os dirigentes são brancos, todos os narradores são brancos, todos os cronistas são brancos, todos os jornalistas, técnicos e empresários são brancos e, por coincidência, os políticos também são brancos, estou chocado por acreditarem nisso...".

“... Não se comenta a integração dos negros no futebol como se faz, por exemplo, na universidade, na representação pública ou nas novelas, sem que ninguém conteste o motivo de não haverem presidentes de clube negros, médicos ou empresários negros...”.

“... Mesmo notando um notável avanço em relação ao passado recente, os negros ainda estão, na cabeça de muita gente, circunscritos à condição de craques, pagodeiros ou favelados...”.

“... Afirmações como “goleiros negros são pouco confiáveis” e “zagueiros brancos são melhores taticamente” são mais comuns do que se pensa...”.

“... Como a política e a cartolagem brasileira funciona à base de apadrinhamento e carreirismo nepotista, não vejo um futuro onde os negros estarão disputando a presidência da república ou mesmo da CBF...”.

“Enquanto tratarmos o racismo com palavras mais elegantes como problema social ou discriminação racial e, sem qualquer espanto continuarmos a utliziar costumeiramente a palavra denegrir (rebaixar, tornar negro), podemos acreditar que ele não anda mais vivo do que nunca, nas bases mais fundamentais de nossa sociedade?”.

Não Barbosa, não podemos. E, sem que a humildade de sua alma permitisse tal comentário pelas vias utilizadas, ainda sinto-me no dever de citar um fato histórico de extrema relevância, que você sequer mencionou: Em 1993, Barbosa foi proibido de entrar na concentração da Seleção brasileira para deixar seu incentivo. Zico, por outro lado, foi recebido com honra. E qual dos dois, diga-se de passagem, “amarelou” em mais em Copas do Mundo?

É o racismo, companheiros. Ele ainda está por aí, escancarado, nas
arquibancadas nos gramados e nas cúpulas administrativas do futebol.

O espírito de Moacir Barbosa aguarda no purgatório por uma justiça tardia, para com os atletas negros do mundo inteiro, apenas para poder seguir a luz e descansar em paz.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

A metacrônica futebolística [inserir título sensacionalista]

O futebol anda cada dia mais [aquele chavão sobre aquilo que o futebol cada dia mais anda].

[A primeira é um caminhão e a segunda o seu baú e se tem uma coisa que o futebol não é mais, é [isso, parafraseado]].

Mas ter passado a [hora do jogo] do [dia da semana] em [lugar onde assistiu o jogo], me fez [ver ou sentir, a depender da pretensão de objetividade] que [primeira pitada de esperança]. O [lance da semana que despertou esse fabuloso insight histórico] [adjunto adverbial de modo para dar ênfase] fez valer o [pagamento feito para ver o jogo]. Mostrou que [nota sobre a beleza única do [sinônimo ou metáfora para evitar o uso demasiado da palavra futebol]].

[Frase lírica sobre o tempo em que o futebol era o que era e que não é mais]. [Metáfora curta, imagem]. Não é mais, caro [referência ao leitor], e [expressão saída diretamente da boca do povo]. A verdade é que estamos fadados a [sentimento repetido amplamente pelos mais informados comentaristas e também pelo do café com leite da padoca, pelo do táxi e pelo do bar].
[adjunto adverbial de tempo], [isso que o futebol não é mais] pode ser visto estatisticamente, mesmo que [consideração sobre a imprevisibilidade do futebol]. [Pequena conclusão sobre os números continuarem não mentindo (é verdade. Somos nós que mentimos. Número não fala.)].

Vejam só que [chamada de interesse para a estatística da brucutulização do futebol]: [estatística com dados absolutos], e principalmente se considerarmos que [estatísticas com dados relativos]. De fato, [conclusão óbvia sobre os dados apresentados]. (Nenhuma consideração sobre a arbitrariedade da seleção dos dados. Eles foram torturados para nos dizer o que queríamos ouvir. Ok, nem sempre).

Além disso, [importante escritor que também publicava crônicas esportivas] certa vez escreveu que [exata pitada de cultura para defender o ponto em questão, que separa os meninos dos homens].

É, leitor, [frase do povo].

Entretanto, [referência ao que disse um inspirado jornalista cultíssimo amigo meu], e portanto [leve pitada de esperança, feliz subclímax].

Mas [patada nos marqueteiros de plantão!]. Um triste [sinônimos opcionais para “absurdo”, “lamentável” ou “vergonhoso”].

Por isso, leitor, [o que e como o futebol revela (o futebol é assofismático. É um caminho para todos os deuses)]. [Exaltação ao Brasil por isso].

[Novo parágrafo curto de efeito, dessa vez focando nos efeitos da globalização culminando no futebol não ser mais aquilo que o parágrafo curto de efeito anterior impactantemente declarou ele não mais ser].

A [nota sobre a fé do torcedor] faz com que [o Brasil é realmente diferente de todos os outros lugares do mundo e principalmente por causa do seu amor incondicional ao futebol].

No tempo do [time glorioso como o Brasil de 70, o Flamengo de Zico], [aquilo que era time]. A [evento da magnitude da invasão de 76], [resumo da conversa que tive ontem com um dirigente gente fina].

[Esperança, a última que morre], [leitor]! Você viu o golaço do [novo talento de 17 anos]?

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Série Grandes Craques Boêmios da História – Edição de Carnaval

Caro folião,

Enquanto outros países se perguntam como a oitava economia do mundo se dá ao luxo de cinco dias ininterruptos de festa, nós brasileiros não perguntamos nada (principalmente porquês, idades ou telefones) até a quarta-feira de cinzas, quando somos tomados por uma ressaca física e moral.

Confesso que, embriagado nessa orgia, pensei em homenagear o futebol tecendo elogios rasgados aos craques foliões, que pulam carnaval e faltam ao treino apenas porque amam a folia. Poderia falar do irreverente Viola, que já desfilou em mais de vinte agremiações carnavalescas de São Paulo, sem esconder sua preferência pela escola rosácea da Vila Brasilândia. Ou então do gogó-de-ouro Paulinho Mocidade, que antes de puxar sambas inesquecíveis da Mocidade Independente de Padre Miguel atormentava os zagueiros adversários ali pertinho, vestindo a 11 do Bangu no Moça Bonita.

Mas estas são histórias que contarei em um outro momento. Hoje, não mais contagiado pelo espírito carnavalesco nacionalista - que à luz do amor nos faz acreditar que não existe melhor lugar que o Brasil -, prefiro relaxar a soberba e admitir que, assim como nós, outros países cristãos possuem belos carnavais e craques foliões, que também merecem entrar nessa lista.

Deve encerrar a carreira neste ano Russel Nigel Latapy, que nasceu em 2 de agosto de 68 em Lattaville, Port of Spain.

Para quem não o conhece, trata-se de uma das personalidades mais famosas de Trinidad e Tobago, aprazível país caribenho banhado por águas azuis translúcidas, onde a cerveja é barata e o cricket o mais popular dos esportes.

Aos 10 anos, Russel foi descoberto jogando nas praias do sul de Tobago e, desde então, chama a atenção por onde passa. Aos 18, já uma promessa, rejeitou um convite da Universidade da Flórida e foi para o Clube do Porto, onde começou sua peregrinação por times pequenos e médios da Escócia e de Portugal.

Sua vocação para a boemia se manifestou ainda na adolescência, quando freqüentava os bares de socca (ritmo local que inspirou o apelido da seleção nacional, os Socca Warriors) da orla de Port of Spain.

Assim o jovem Latapy, que demonstrava incontestável talento tanto para a música com
o para o futebol, logo se maravilhou com a efervescente noite européia. Já nos primeiros anos de Porto passou a ser conhecido pelas freqüentes noitadas, pela companhia de belas mulheres e pelos cabelos sempre estilosos. Em campo, porém, apesar das boas atuações, o craque ficou marcado por perder um pênalti contra a Sampdoria, que tirou o time português do torneio europeu.

Ao se desligar do Clube do Porto, Latapy ainda ficou alguns bons anos na terrinha, sem se destacar em nenhum clube importante. Mas se as portas da terra de Camões estavam fechadas, a Escócia recebeu Russel de braços abertos – o jogador foi a grande aposta do Hibernnian para a temporada de 1998.

Por lá, “The Litlle Magician” (carinhoso apelido de Latapy, também conhecido co
mo “Lata”) é famoso por ter protagonizado o maior escândalo da história do modesto clube, que jamais saiu em tablóide nenhum por causa de conquistas.
Numa fatídica madrugada, Russel foi preso por colidir seu carro contra uma propriedade do estado, supostamente alcoolizado, junto de um amigo de infância (Dwight Yorke, então craque do Manchester United) e de duas mulheres seminuas, uma delas casada. O caso, cheio de versões fantasiosas que circulam pela internet, repercutiu negativamente na carreira de Latapy. Fontes anônimas chegaram a afirmam que, ainda sob efeito do álcool e indagado sobre a presença de uma mulher casada no veículo, Russel respondeu desconhecer o fato de uma delas ser uma menor de idade.
Balelas sencacionalistas, que nunca foram provadas.

O fato é que, injustiçado e machucado pelas críticas pesadas, Russel ainda teve algumas fracas passagens por outros pequenos times da Liga Escocesa, antes de se retirar dos gramados e abrir uma simpática barraca de praia na Ilha da Madeira, em Portugal. E Lata teria ficado por lá, curtindo a vida e relembrando com nostalgia seus mais belos gols e dribles, se o destino não reservasse grandes planos.

Convencido por amigos, ele volta aos campos e também à seleção, pela qual tinha tido uma boa participação em 1990 - os Socca Warriors ficaram de fora daquela Copa por um empate. Aos 38 anos, fumante inveterado – sempre disse que fumava um maço de cigarros por dia sem que isso lhe prejudicasse o rendimento - e longe de suas condições ideais, Russel Latapy vestiu a camisa 10 e jogou por 23 minutos na partida contra o Paraguai, durante a Copa do Mundo da Alemanha, em 2006.


Na volta ao seu país, foi homenageado no Estádio Nacional de Hasely Crawford. E após duas voltas em torno do gramado que o revelou ao mundo Russel, ofegante, foi aplaudido de pé por mais de vinte mil pessoas.

Por ser o primeiro cidadão de Trinidad e Tobago a jogar nas ligas européias – traçando um caminho depois percorrido pelo muito mais bem sucedido Dwight Yorke – Latapy tem considerável fama e goza de inúmeros privilégios em sua cidade natal, onde fundou recentemente a Russel Latapy Secondary School, apenas para crianças carentes de Port of Spain.

Para se ter uma idéia de seu prestígio pelas ruas da capital, uma conhecida piada diz que, ao chegar ao céu, um padre muito popular começou a ser apresentado às grandes personalidades locais falecidas (você não conhece nenhuma), até o momento em que encontrou Russel Latapy. Confuso, o recém-chegado mandou chamar São Pedro e afirmou:

- Mas Latapy ainda está vivo!

São Pedro, com um triunfante sorriso de canto, chamou-lhe ao canto e disse:

- Bahhh! Aquele é apenas Deus, fingindo ser Latapy.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Crônica de um jogo que não houve

Na semana do aniversário do gênio Romário, meu artigo seria dedicado aos 40 anos recém-completados de uma peça fundamental para o sucesso da seleção de 94. Mauro Silva, o jogador de menos categoria no pior meio-campo campeão do mundo que este país já produziu, é um exemplo de como deve ser entendido o futebol moderno, que pode prescindir até mesmo do futebol em nome do resultado. Vocês devem se lembrar quem dos dois citados esteve mais perto de balançar as redes italianas... Aos tetra-campeões aniversariantes, meus parabéns.

De última hora, no entanto, recebi um e-mail comovente de um amigo de longa data, o Diogo Menezes, barman existencialista e filósofo habilidoso, que publico na íntegra, mais pela pertinência e atualidade do tema “taça das bolinhas” e por apreço a seu relato pessoal do que por concordar com ele. Curiosa é a presença insistente de Mauro Silva nos textos, nos marcando de perto...



“Caro Tiago,

Seu e-mail provocador a respeito do Corinthians x Guarani da última quinta me lembrou outros tempos, em que tanto eu como você tínhamos motivos para sorrir, em vez de nos provocar mútua e pateticamente desde as divisões inferiores do decadente futebol brasileiro.

Lembrei daquelas finais do Paulistão de 88, do gol inesquecível do Neto e do surgimento do Viola, que apareceu dando o título a vocês. De lembrança em lembrança, eu acabei lembrando dos 20 anos de uma data que aparentemente passou desapercebida para todo mundo, menos para mim. O dia 24 de janeiro de 1988. Eu, com meus 10 anos, era sócio e um entusiasmado torcedor do forte Guarani, que já não tinha Careca, mas tinha Evair, além de Giba, Ricardo Rocha, Boiadeiro, João Paulo, o jovem Mauro Silva no banco e voltaria a ter Neto, pouco tempo depois.

Apesar da decepção com a roubalheira da final de 86 (disputada em 87), acompanhei o Bugre por todo o ano de 1987, no Paulista, na Libertadores (em que, de certa maneira, nos vingamos, vencendo o São Paulo aqui e empatando no Morumbi) e, enfim, no Brasileiro. Meu pai era fanático e íamos a rigorosamente todo jogo no Brinco.

Eu, porém, sabia que não existia apenas o Guarani e, já como hoje, era um admirador do futebol. Quando os compromissos com meu time permitiam, assistia na TV aos jogos dos outros. Era impossível não se entusiasmar com o time de Renato Gaúcho, Bebeto, Jorginho e, ele, Zico. Ele, que desperdiçara o pênalti do jogo na Copa anterior, e voltara a desfilar sua classe pelos gramados brasileiros.

Quando, ainda no início de dezembro, o juiz apitou o fim do de Guarani 1x0 Atlético Paranaense, depois de mais de 80 minutos de sofrimento, eu explodi de alegria e torci muito para que o Flamengo entrasse no quadrangular. Classificados Flamengo e Inter no módulo Amarelo, sempre com a cabeça no quadrangular, acompanhei na TV a histórica disputa de pênaltis com o Sport (11x11!!!) e esfreguei minhas mãos em júbilo esperando o dia em que meu Guarani mediria forças com o Flamengo de Zico, que no mesmo momento despachava o Inter, sagrando-se campeão do Módulo Amarelo.

No dia seguinte (eu não falava em outra coisa), meu pai, preocupado, veio contar-me que o Flamengo e o Internacional haviam abandonado a disputa e o Flamengo já se considerava campeão brasileiro e quadrangular seria reduzido a um jogo de ida e outro de volta com o Sport. “Como pode haver um campeão sem ter enfrentado o time mais forte?” – pensava eu. Era a segunda final que nos roubavam – e desta vez nem nos deixaram jogar! Fiquei com raiva do futebol e virei o ano pensando em outras coisas. Passadas poucas semanas, já era um torcedor de novo, jogava minha bola e freqüentava meu clube do coração.

No domigo 24 de janeiro de 1988, lembro de acordar cedo com a idéia fixa de ver o jogo com o Flamengo. No fim da manhã, toda a família foi para o clube. Perto das 17h, enquanto todos estavam na beira da piscina, já bem cansados, fui sozinho até o estádio tristemente vazio, fechei os olhos, ouvi a torcida bugrina cantar forte e vi o Guarani enfiar 2 a 0, um de João Paulo e outro de Evair, no covarde time do Flamengo. Zico, além de perder um pênalti, teve atuação apagada graças à boa marcação de Tosim. E o quadrangular final continuou em aberto. Fui embora com o gosto da vitória e deixando naquele estádio uma parte de minha infância. Até fui nos jogos posteriores em que perdemos o título para os recifenses. Mas, na verdade, para mim, não há 2 campeões de 1987, nem um. Para mim, aquele campeonato não acabou.


Grande abraço,

Diogo”