quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Um martelo agalopado para o futebol nordestino no cordel sem-fio

Esse projeto de martelo agalopado foi composto à luz da inspiração que os grandes repentistas nordestinos de São Paulo despejaram sobre mim recentemente, por ocasião de um projeto cinematográfico da 13 Produções cujo lançamento está previsto para o começo de 2009.

O repentismo é uma forma de arte verdadeiramente incrível. Um bom cantador repentista domina várias dezenas de formas diferentes, cada qual com seus motes, seus temas, esquemas de métrica, rima, ritmo e melodia, e pode cantar em público de improviso sobre praticamente qualquer coisa, acompanhado de sua expressiva viola.

(Inacreditavelmente, os repentistas reclamam que sua arte está se perdendo. Eles dizem estar envelhecendo sem que as novas gerações se interessem por ela).

O martelo agalopado é uma destas modalidades, inventada na passagem do século XIX para o XX pelo paraibano o Silvino Pirauá de Lima. Inspirado no martelo, formato criado no século XVII com base no verso heróico - o verso de Camões em "Os Lusíadas", por exemplo -, ele é composto por estrofes de dez versos (ou décimas) com dez sílabas cada, com as tônicas na terceira, sexta e décima sílabas e rimas no esquema ABBAACCDDC, podendo haver variações.

Pessoalmente, considero o martelo agalopado uma das modalidades mais bonitas de todo o repentismo. Cantado é ainda mais bonito, mas isso por ora vou ficar devendo.

ZP

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Um martelo agalopado para o futebol nordestino no cordel sem-fio

Vou falar de um assunto muito antigo
numa forma há tempos praticada
que já foi muito longe pela estrada
e na gente encontra seu abrigo.
Peço sua atenção meu caro amigo
para um povo que é rico de tutano,
mas mistura o sagrado e o profano
desejando que o esporte seja grato:
se mandinga ganhasse campeonato
no nordeste era empate todo ano.

Na nação nordestina a bola rola,
tem na mata, no agreste e no sertão,
seja terra ou grama é nosso chão,
pé descalço ou de trava sob a sola.
Pois o jeito que o povo se consola
da incerteza inerente ao ser humano,
é um jeito que não cartesiano
e poeta não vive só de fato,
[mas] se mandinga ganhasse campeonato
no nordeste era empate todo ano.

Vi trabalho, vudu e vi padê,
vi despacho, ebó, feitiçaria,
vi macumba, serviço e bruxaria,
coisa-feita, encomenda e canjerê.
Já vi cabra que crê e que não crê
perguntando o futuro pra cigano,
santo dando chabu, pedindo abano
e por isso defendo sem recato:
se mandinga ganhasse campeonato,
no nordeste era empate todo ano.

Homenagem à luta, à tradição,
Tricolores, Dragão, Nêgo, Baru,
Galo do Seridó, Coral, Timbu,
Fortaleza e Recife têm Leão.
Fluminense da borda do sertão,
Botafogo, Fogão paraibano,
ouça bem, Tricolor corinthiano,
Dinossauro e Touro que é pato:
se mandinga ganhasse campeonato,
no nordeste era empate todo ano.

Um poeta não pode ser injusto
com a honra e memória dos heróis
que entregaram seu sangue sob os sóis,
conquistando a glória a muito custo.
Não foi santo nem orixá robusto,
que levou a esfera sobre o plano,
Foi Lampião de gibão feito de pano
e Corisco veloz, talento nato.
Se mandinga ganhasse campeonato
no nordeste era empate todo ano.

Futebol é um jogo tão perfeito,
não permite saber quem é que ganha,
a não ser se for caso de barganha
de cartola que é sempre reeleito.
Vejo nisso um tremendo desrespeito
ao poder de um povo soberano.
É o destino, senhor nosso tirano,
quem escolhe se é golaço ou mato:
se mandinga ganhasse campeonato,
No nordeste era empate todo ano.