segunda-feira, 23 de junho de 2008

Uma breve história não-eurocêntrica do futebol

por Tiago Marconi
(quase todo o photoshop: Caio Polesi)


O texto do companheiro de zaga Chico Garcia, publicado no início de maio, ao contrário do que o número de comentários pode dar a imaginar, teve enorme repercussão no meio acadêmico. Como era minha vez de escrever e andei muito ocupado com trabalhos e com o Corinthians para poder refletir sobre futebol de maneira lúdica, inteligente e que cative o leitor (ou os leitores, contando comigo), resolvi apenas resumir um pouco das ponderações de alguns intelectuais com muita circulação nas instituições acadêmicas do mais alto grau etílico do país.

Dez minutos após a publicação da crônica, meu telefone tocou. Do outro lado, Sean Fitzgerald. Sean é um dos muitos irlandeses que acessou o blog devido ao texto sobre o Bohemian, é historiador e professor de Football Studies na CSN (Coláiste Stiofáin Naofa, Faculdade de Educação Continuada), em Cork (inclusive o pai dele jogou nos Cork Bohemians, time que não existe mais, mas isso é outra história). Grande admirador do futebol britânico e irlandês disse estar de acordo sobre o ideal implícito do futebol, “usar a violência e extravasar a raiva em seus semelhantes, sejam eles pobres, ricos, fortes ou fracos, mas especialmente ingleses”. Ponderou, no entanto, que alguns estudos recentes no Brasil e nos Estados Unidos apontavam para uma origem no sudeste da América, provavelmente entre Sergipe e o Espírito Santo. Disse que a ligação estava saindo muito cara e o gelo estava derretendo, mas que me mandaria os contatos dos pesquisadores.

Apesar de Fitzgerald, por algum motivo, ter mandado o e-mail em irlandês, consegui pinçar os nomes e e-mails de Thomas Bogart e Jahilton Verde. Os dois trabalham juntos numa pequena missão arqueológica que reúne a Universidade do Colorado e a UFBA (Universidade Federal da Bahia), num lugar não divulgado da chamada Costa do Dendê. Assim que entrei em contato, fui convidado a ir conhecer a missão. Sem medir esforços em nome da informação precisa, peguei meu caderninho, câmera fotográfica, protetor solar, óculos escuros, sunga, chinelos e me mandei.

Bogart, estadunidense de Wray, Colorado (quase Nebraska, quase Kansas), é PhD em arqueologia e há décadas pesquisa “indícios de presença humana em regiões tropicais litorâneas de notória beleza”. Afirma ter encontrado um fóssil de coco datado de 4 mil anos em Arembepe, no verão 1970, ao lado de um esqueleto com traumatismo craniano e diversos calos ósseos no pé direito. “Em várias praias da região se encontrou esqueletos masculinos com calos nos pés, alguns deles rodeados de esqueletos femininos e pedras preciosas” – diz o cientista.

Jahilton, carioca da Tijuca, formado botânico e mestre em história, fez seu doutorado em antropologia, com o título “o hábito de se tomar água de coco – uma abordagem multidisciplinar”. Ele afirma que, ao contrário das versões amplamente difundidas “em revistas de culinária” de que o coco viria do delta do Ganges ou do Pacífico Sul, há evidências muito fortes de que ele se espalhou a partir do Equador pela costa amazônica (que na época era mangue) até atingir a costa do Nordeste, de onde foi levado para o mundo no ciclo do açúcar. Diz que descobriu por acaso um registro sobre algo parecido com o futebol – “que sempre achei um saco” – na carta do segundo enrabadiço da frota de Cabral, Tomás Pinto da Costa, a Josefina Silva, dama de companhia da infanta Maria, filha de D. Manuel I. “Costa deixa claro que Caminha esteve por demais preocupado com vergonhas altas e cerradinhas para notar muitos aspectos da cultura indígena. E além disso é literariamente superior, mas pela função, digamos, pouco nobre do autor do relato na tripulação, o documento fica escondido”.

De acordo com as pesquisas dos dois, os índios Pataxó da costa da Bahia chutavam cocos de uma praia a outra como forma de se comunicar. As condições para pesca, o avanço de uma tribo inimiga, a chegada dos portugueses, tudo era avisado dessa maneira. “Era uma forma de comunicação complexa, que exigia força e muita precisão... Um passe errado da tribo A podia ser interpretado pela tribo B como ‘casamento amanhã, rsvp’ e, enquanto a tribo B se arrumava, a tribo C vinha e a destruía... Era um mundo violento como hoje, mas a técnica individual definia os resultados. Os responsáveis pelos chutes gozavam de muito prestígio” – contou Jahilton. Ao longo do tempo, com os portugueses cada vez mais presentes na costa, os índios tinham que ser rápidos e habilidosos para chegar até a praia, fugir dos brancos, chutar e voltar para a tribo, assim se desenvolveram o elástico, o rolinho, a finta, a olhadinha para o outro lado, a comemoração girando os braços com os punhos fechados (defesa pessoal muito eficiente). Bogart defende que “depois de 3500 anos jogando livremente ou contra tribos sem cultura tática defensiva, os brasileiros tiveram que aprender a lidar com a marcação, essa sim uma invenção européia”, e completa: “em nenhum registro europeu supostamente sobre futebol se menciona a bola, são registros de batalha”. Verde explicou ainda que, antes dos contestados documentos europeus medievais, houve precursores do futebol na China, no Japão, na Grécia, no México e em Roma.

Os dois me levaram ainda para conhecer o último representante da cultura futebolística Pataxó, que tentou demonstrar sua técnica mas estava mais para Galeano do que para Gérson. Ao questioná-lo sobre seu forte sotaque hispânico, porém, o humor dos três, que até então me tratavam como um príncipe, mudou radicalmente e tive que antecipar minha viagem de volta.