quarta-feira, 19 de maio de 2010

O guia definitivo do apostador na Copa 2010

Bolão é bom igual frango, como se diz por aí no Brasil profundo. Quatro anos de diretos de gozação sobre a rapaziada, com direito a uma bufunfa pra rebater.

Este ano, nossas contribuições ao campo do fut-internacionalismo prospectivo aplicado vêm antes da Copa. Testemo-las. Todas as previsões erradas ou seu dinheiro de volta.


Detalhe: este guia foi escrito a partir do dia em que os grupos foram sorteados e concluído ainda em fevereiro. Acreditamos mesmo que a história de longa duração é mais importante que a história dos eventos.

Metodologia
Nossa rationale reflete a dinâmica do futebol de Copa do Mundo e é bem simples:

Primeiro apresentamos o grupo e seus times.

Em seguida perpassamos o óbvio – um pouco mais do quem é quem, e o que é obrigatório saber em cada caso. A ciência da Copa do Mundo não é exata, mas está LONGE de ser aleatória. Viva a história.

Depois vislumbramos os detalhes intangíveis que podem alterar os padrões normais e ajudar a dirimir dúvidas. O peso de cada camisa, freguesias escondidas, duelos específicos, choques de estilos, rivalidades, efeitos morais, influência do tipo de Copa. O futebol internacional é cheio dos seus clássicos, em muitos sentidos.

O próximo passo é o principal: fomos consultar os oráculos e entender o bem-me-quer, mal-me-quer do panteão do futebol de Copas. Os deuses são cruéis e vingativos, mas premiam docemente a quem os agrada.

A partir daí buscamos entender o desnovelar do fio de cada história, a partir da tabela. Um grupo difícil pode ficar mais suave a depender da ordem das partidas; um grupo aparentemente fácil, depender do resultado de uma estreia difícil. O desenho do destino é revelador.

E o resultado é a prospectiva aplicada: uma análise de fatores críticos e seus índices PDM (índice de Potencial de Dar Merda, indicador de risco aprimorado a partir do SUR – Screw Up Rating, de Yale), objetivando revelar bons movimentos estratégicos aos interessados.

O que? Análise dos times? Não precisa, não. É Copa.

Grupo A: África do Sul, México, Uruguai, França

O grupo do time da casa Questão de ouro deste grupo: o que ocorre com o velho “o time da casa quando é ruim vai até a segunda fase, e perde”? Estados Unidos em 94 sobre a Colômbia, Japão em 2002 sobre Rússia, México em 70 e 86 sobre a mesma Bélgica, todos os anfitriões débeis sempre passaram. França deve passar, apesar da relativa crise, então este grupo, que tem México e Uruguai, é bem difícil. O próprio fato de que a FIFA não armou uma baba pro anfitrião é revelador.

Fatos e fatores O time da África do Sul é o 81º do ranking da FIFA de janeiro, tem apenas uma vitória (Eslovênia em 2002) e dois empates chatos (Dinamarca e Arábia em 98) em Copas do Mundo, já tomou sacode da adversária França (98) e tem muita dificuldade em fazer gols. É candidato sério a “primeiro anfitrião que não vai pra segunda fase” e vai precisar de todos os intangíveis da categoria país-sede: atmosfera dentro do estádio – o hino... Vuvuzelas!, atmosfera dentro do campo, atmosfera de união dentro do país, efeito Copa-na-África e, principalmente a colaboração do professor FIFA (que os deuses reprovam, mas sempre admitiram). Até porque seus rivais são dois ex-campeões e um time que passou para a segunda fase nas últimas quatro Copas – sim, o México é vovô de Copa do Mundo, como diz o Chico, e respeito com o vovô.

Hino ajuda a ganhar, mas... O hino merece comentário, pois foi decisivo em favor de Japão e Coreia do Sul em sua salvação da infâmia em 2002 – Japão com uma lindíssima melodia sobre o Império durar até o musgo crescer na rocha, Coreia do Sul com uma peça sobre o país durar até que o Mar do Leste seque.
O hino da África do Sul é único no mundo. São quatro estrofes com versos em cinco idiomas diferentes (xhosa, zulu, sesotho, africâner e inglês), tecidas em formato colcha de retalhos modular. Começa banto, vira holandês no meio e termina britânico. Um hino mandelista, híbrido entre colonizadores e colonizados. A primeira parte é uma beleza. Nkosi sikelel’ iAfrica – Deus abençoe a África! – está afetivamente ligada aos negros que amam futebol por lá. Mas depois... A parte européia... Sei não. E como é para os negros, cantar em africâner? Pelo menos contra a França, no jogo que decide, dá La Marseillaise trois-zero plus le chocolat. Sou mais México, também, perfilado de continência sobre o peito para louvar a nação; e Uruguai, dizendo “Orientales, la patria o la tumba” e jogando de acordo.

...e os deuses? A África do Sul é um time africano defensivo na mão do velho Parreira e poderia se ajudar mais. Vuvuzelas? Benny McCarthy? Se tivessem contratado o Guus Hiddink ou o Bora Milutinovic, grandes melhoradores de seleções, os deuses sorririam. Mas sei não, talvez validem apostas contra os anfitriões desta vez, coisa que normalmente muito reprovam. Times em campo, o panteão se entreterá com o espetáculo de sacrifício e devoção e tomará partido apenas como torcida – certos deuses preferirão um pouco Uruguai sobre México, por ainda se lembrarem da era de ouro do futebol uruguaio, enquanto outros quererão punir levemente a França pelo nhe-nhe-nhém de derrubar o técnico em época de carnaval e pela palhaçada da prostitutinha que deu pro Ribery e mais meio time antes de completar 18 anos e depois caguetou geral; mas em nenhum caso haverá massa crítica divina para grandes intervenções.

O desenrolar Difícil. Uruguai e França, dois times com camisa e efeito ex-campeão se pegando logo de cara, enquanto o México tenta papar logo o anfitrião na estreia, podendo ficar a coisa um pouco feia pros dois lados com um empate. Na segunda rodada, Uruguai-pós-França contra o anfitrião, não se sabe onde em relação ao efeito Copa-na-África, e México muito provavelmente dando um jeito de não ganhar da França. No fim, México e Uruguai se matam pelo que estiver ao alcance, e França pode matar o time da casa... ou eventualmente ceder pontinhos suspeitos, num conto de fadas.

Conclusão Esse grupo é dos bão, qualquer decisão consciente terá embutida um alto Índice PDM-A (o índice de risco que mensura o Potencial de Dar Merda da Aposta). Cada um que decida se camisa vale mais, se o juizão decide pela África do Sul, ou ainda se o fato de o Uruguai ter um atacante chamado El Loco pode sensibilizar os deuses. No confronto direto, Uruguai um pouco sobre México por uma questão de camisa, México merecendo respeito pelo retrospecto recente de arrancar várias classificaçõezinhas safadas seguidas. Noves fora: qualquer coisa pode dar. Provavelmente haverá vários empates. E que coceira, apostar contra o anfitrião. É de se cometer esta loucura.

Grupo B: Argentina, Nigéria, Coreia do Sul, Grécia

Argentina e Nigéria de novo! Oba! Felizmente a FIFA manipula os sorteios e faz grupos como esse, colocando Argentina e Nigéria juntos de novo. A leitura é: uma potência em má-fase tem chance de se crescer sobre dois times perigosos que se matam no segundo jogo, e o asiático entra como franco-atirador (ou seja, vai acabar perdendo, mas pode escolher alguém para levar junto).

Versão oficial do Grupo da Morte Pelo fraudulento ranking da FIFA, quase um Grupo da Morte – tem o 8º, o 12º (Grécia!), o 15º (Nigéria), mais a República da Coreia (49º, com vitórias recentes sobre Senegal, Austrália, Paraguai, Finlândia...). A má-fase do time do Maradona, o efeito Copa-na-África sobre Nigéria e o difícil teste à capacidade de surpreender da Grécia, que já ganhou até Eurocopa mas não tem nada de tradição de Copa, são os fatos. Coreia do Sul, só se for verdade que eles trocam os 11 no intervalo sem ninguém perceber.

Intangíveis devem decidir Argentina sempre uma tensão entre ser fortíssima nos elementos não-mensuráveis (embora não em estreias contra africanos) ao mesmo tempo em que seu jeito de ser cria situações de alto PDM – e o Maradona, el gran cherador de 94, é o técnico. O efeito Copa-na-África sobre Nigéria é um grande talvez – segundo o Marilião a malquista Nigéria sofre um mau-olhado daqueles no resto do continente – mas é de se esperar a emergência de uma seleção africana, e por que não a Nigéria? Pode ser. Pode ter até mais de um emergente. Coreia do Sul sentirá o efeito-África, imagino, sem o hipnótico “Dae-Han-Min-Guk!” em seu favor. Grécia... Fraquíssima neste setor, nunca fez um único gol em Copas. O argumento a favor é que o time é extremamente chato. Mas a tradição é zero – zero gols pró e dez contra.

Queridinhos dos deuses Para os deuses... Maradona! Ter um técnico com igreja própria dá aos argentinos um potencial infinito, independentemente do time – El Pibe de Oro é o predileto do panteão, um herói para quem um dos deuses já fez até gol em Copa. Messi ser “pouco argentino” é uma afronta às divindades, mas provavelmente a vingança não virá na primeira fase. Mas... Maradona! E classificando no último jogo, o que aumenta a chance de intervenção. Os deuses adoram a Grécia, aposto – prova disso sendo o título da Eurocopa 2004 com timeco –, e idolatram o fato de o técnico grego ser o mesmo desde então (embora Euro seja Euro). Por mais que meio brucutu, Grécia é uma queridinha. A Nigéria é um pouco mal vista, mas já trouxe alegrias e pode muito bem ser abençoada se jogar bem. Já os asiáticos, diante de times de camisa ou europeus chatos, são vistos como divertidos coadjuvantes, no máximo, e quando são ajudados é pela terrena mão do interesse da FIFA.

O desenrolar A primeira rodada deixa o grupo aberto, com Argentina não perdendo de Nigéria (sua freguesa em Copas) e Grécia e Coreia do Sul se complicando com vantagem Grécia, mais time; na segunda rodada, Grécia versus Nigéria decidido muito pelo efeito-Copa-na-África (com Nigéria tendo que merecer simpatia, o que pode não acontecer), e Argentina se tranquilizando sobre Coreia do Sul; a decisão é com Nigéria tendo o jogo mais fácil e Grécia, freguesa, não se salvando sobre Argentina. Não?

Conclusão Tudo indica Argentina em primeiro, pois tem efeito-freguesia sobre os dois adversários mais difíceis; sua intensa relação com os humores divinos fará com que esta influência seja mais decisiva depois, atuando aqui somente na criação de um clímax trágico ou cômico posterior. Nigéria melhor que Grécia deve passar, e provavelmente não em primeiro. Chances de Grécia supreender são ganhar a primeira, não perder a segunda, e não perder da Argentina. Pequenas. Coreia do Sul... Caveat emptor – PDM máximo, ao gosto do freguês.

Grupo C: Inglaterra, Estados Unidos, Argélia, Eslovênia

Grupo geopolítico Oba! Um grupo geopolítico! Confronto entre metrópole-colônia, efeito metrópole-na-ex-colônia e um choque de civilizações verdadeiro, não aquela bobajada do Samuel Huntington. No fundo, uma baba para o melhor time e uma boa chance de Estados Unidos passarem. Argélia não é grande coisa, mas tem algumas jóias como retrospecto (ganhou da Alemanha em 82, apoiando-se no fato de ser norte da África jogando na Espanha). Eslovênia é sem tradição demais, embora tenha o efeito país-pequeno em seu favor – países pequenos e bonitinhos sempre lutam muito.

Fatos e fatores O principal fato é que a Inglaterra é um time bastante bom, cujo potencial de zica costuma se expressar somente a partir das quartas-de-final. Estados Unidos, que andaram abusados com seu jogo de contra-ataque e em Copas recentes já ganharam de Portugal, México e etc., são seus freqüentíssimos fregueses. Argélia e Eslovênia são teoricamente equilibrados entre si – 31º e 33º do ranking da FIFA, mas Argélia tem bem mais camisa, enquanto Eslovênia tem jogado mais direitinho, parece.

Intangíveis divertidos O jogo metrópole-colônia não deve dar colônia, mas os americanos responderão muito bem em caso de sangue (como em McBride v. Itália, 2006), enquanto estar numa ex-colônia vai deixar os ingleses à vontade. Em termos de intangíveis, a Inglaterra têm lá seus problemas mas não deve ter dificuldades com este grupo. Eslovênia não tem elemento nenhum em seu favor, e a Argélia vai encontrar um contexto não necessariamente amistoso em termos de efeito África, mas tem mais moral que Eslovênia. O efeito determinação-motivada-religiosamente, de que até o Brasil se beneficia um pouco, pode levar a momentos de superação por parte deste time. São gente séria.

Deus x Alá decidindo grupo Argélia tem maior potencial que a Eslovênia de complicar o grupo e vem com Alá pra cima especialmente de Estados Unidos – Alá não é muito bom de bola mas instila na equipe uma determinação sem igual, admirada na divina arquibancada. Inclusive, as tribunas de honra dos deuses, tradicionalistas, não gostam de Estados Unidos, um país-em-que-futebol-não-é-o-principal-esporte e que chama-futebol-de-soccer, mas há um movimento capitaneado pelos deuses mais amodernados pela revisão desta posição. A tendência ainda é minoritária – tanto é que quando Landon Donovan deu uma de mascarado ao fazer 2x0 no Brasil sendo ele dos EUA, o time pagou tomando a virada. A Inglaterra tem relação neurótica com the football gods e sempre os afronta – desta vez, foi com esse negócio de zagueiro comer a mulher do lateral, que incomoda por si só e por se tratar de infidelidade à identidade nacional, que “segundo uma pesquisa da Universidade de Leeds” é não comer a própria esposa, quanto menos a dos outros. Mas não deve tremer para Alá, que é coisa de país mais novo. Por fim, os deuses do futebol nem sabem diferenciar muito bem a Eslovênia da Eslováquia. Vão usar a chance para aprender.

Desenrolar A estréia contra Estados Unidos pode deixar os ingleses desconfortáveis de início, e Argélia x Eslovênia determina o poder subsequente de chateação destas equipes; pelo estilo, Eslovênia pode até chatear Estados Unidos no segundo jogo, especialmente se tomar ponto de Argélia, mas Argélia sucumbe a Inglaterra independentemente do resultado do primeiro jogo; Inglaterra relaxa para o jogo mais fácil na terceira rodada, enquanto Estados Unidos pegam uma determinada Argélia­ talvez dando mais importância a este jogo do que aos outros.

Conclusão Landon Donovan neles? Inglaterra seguramente passa e a segunda vaga é dos Estados Unidos a não ser que os deuses se mostrem conservadores na Copa da África. Nesse caso, Argélia emergeria sobre eles no jogo final. Eslovênia, sei não; não é muito de passar de grupo.

Grupo D: Alemanha, Austrália, Sérvia, Gana

O grupo Complicadinho, esse daí. Tem um dos melhores africanos, candidato a melhor africano desta Copa, e o segundo europeu é mala – sem falar na Austrália, possivelmente mais difícil que os outros times que se classificam jogando pela Ásia. Ou seja: um pega pra capar pra decidir o outro time que passa, sendo que Gana é o time com mais chance pelo efeito África e por entrar no ano da Copa em ascendência – amplificada pela relativa simpatia dos africanos pelos ganeses, com relação à Nigéria e Argélia, e pelo efeito tabela.

O que dá para saber desde já O fato principal a ser respeitado é que Alemanha é Alemanha. Gana, Sérvia e Austrália têm chance (nesta ordem). A Sérvia ganhou o grupo que tinha França nas eliminatórias tirando a tradicional Romênia, mas dentro do torneio mundial isso não quer dizer nada – e o retrospecto iugoslavo sempre foi de farta freguesia contra Alemanha. Resta Gana – forte, até, mas possivelmente apenas um africano irresponsável e meio sem ataque. Esse confronto é de decidir bolão e é importante pensá-lo direito. Já Austrália, apesar de perder meio roubado pra Itália na Copa passada, só tem uma vitória em todos os tempos, contra... Japão. É um pouco engodo.

Fatos são fatos, mas... Alemanha não tem muito papo – simplesmente vai passar, mesmo não sendo muito boa. Gana tem um belo potencial de efeito África e boas vibes recentes em Copas – papou República Tcheca e Estados Unidos, passando de um grupo bem complicado em 2006. É um futebol que incomoda faz tempo nas categorias da molecada e candidato sério a subir de patamar. Sérvia é jovem e ousada, até pode ser uma boa pedida contra africanos, embora nenhum dos dois nesse caso tenha o ataque como ponto forte. Austrália tinha bom perfil quando o técnico era Guus Hiddink, mas agora é de novo um brucutu taticamente atrasado no tempo.

...os oráculos falam difícil A maioria dos deuses não curte Austrália, neste grupo – este país-em-que-futebol-não-é-o-principal-esporte, além de chamar futebol de soccer, desta vez se classificou pela Ásia, coisa que nunca pegou bem no Olimpo. A leitura da questão Sérvia x Gana é um pouco nebulosa: a Sérvia não apenas é um time-de-país-que-se-dividiu, o que gerou uma série de seleções-filhas engodos, mas é a parte do ex-país responsável pela divisão, o que contamina sua popularidade divina; contrabalançando este fato, a influência histórica do Brasil no futebol local é vista com bons olhos – um dos principais estádios do país se chama Marakana. O panteão parece gostar de Gana, apesar de os sinais não serem tão claros – certos deuses às vezes parecem prestes a revelar que gostam muito da bola ganense, o problema sendo apenas a porcaria que é o país. Mas mesmo estes deuses cobram caro pela falta de seriedade defensiva, verdadeiro craque ao contrário: pode decidir sozinho. Alemanha? Na primeira fase, nem acende vela.

A sorte favorece aos ousados? Sérvia x Gana abre o grupo e, sendo estreia, pode tanto favorecer Gana, mais à vontade, quanto Sérvia, se o estilo encaixar, Gana com mais pegada; Alemanha papa Austrália com base em blitzkrieg e camisa. Na segunda rodada, Sérvia contra Alemanha paga por ter os dois jogos mais difíceis logo de cara e pelo efeito freguesia, embora não tenha perfil de time que seria goleado por ela, ao tempo em que Gana tem chance de ouro de se dar bem sem depender do jogo contra Alemanha. Há boa chance de a última rodada valer a liderança do grupo e a honra dos eliminados Sérvia e Austrália nos jogos simultâneos da última rodada.

Assim sendo Não seja bobo de apostar em Austrália passando do grupo nem louco de acreditar contra a Alemanha aqui. Portanto, a margem de manobra está entre Gana e Sérvia, situação de PDM considerado médio-alto, com Gana parecendo melhor mas Sérvia despontando como uma zebrinha possível. Inclusive, Gana em primeiro e Alemanha em segundo pode ser uma alternativa interessante, principalmente se Alemanha não conseguir golear os outros times. Não costuma acontecer – a última vez que Alemanha não ganhou seu grupo foi em 94 – mas pode muito bem ser um dos truques do efeito África.

Grupo E: Holanda, Dinamarca, Japão, Camarões

O grupo É um belo grupo. Holanda está com pinta de time que vai melhor do que parece, e tem uma primeira fase desafiadora com a sempre respeitável Dinamarca e Camarões jogando na África. O grupo parece o anterior, com a diferença de que os times são mais simpáticos com a gorducha e o segundo europeu é bem mais time – ou seja, deve ter futebol melhor e ser mais imprevisível.

Teu passado te persegue O elenco da Holanda está bem afinado ao estilo histórico do time, ofensivo e aberto, e o contexto do torneio pode dar espaço para este tipo de jogo. A Dinamarca nunca vai mal contra africanos e passou do grupo nas três Copas que disputou (embora só tenha disputado Copas na Europa). Camarões nunca papa os europeus de verdade e com dois europeus no grupo falhou em passar adiante nas últimas três Copas de que participou, conseguindo avançar apenas em 90 com vitória sobre Argentina e um time folclórico. Isto é significativo. Japão vem pra fazer número e não deve fazer cócegas.

Efeito-África interessante Para os laranjas, o efeito-África pode tanto ajudar, caso prevaleça um clima de união que amplifique o efeito ex-colônia, quanto atrapalhar no caso de aflorar certo ressentimento pelo passado de violência. Deve ajudar, porque o futebol holandês é pra frente. Camarões tem o efeito África e o efeito craque na pessoa de Eto’o, uma combinação explosiva aguardando detonação. Dinamarca tem um detalhe: é um time meio velho, passível de sofrer na mão do time africano porque isto talvez não sirva em uma Copa na África, muito menos neste grupo. Japão só tem o maravilhoso hino sobre o Império durar até o musgo crescer na rocha, mas nenhum futebol para fazer valer este detalhe – Keiji Tamada decidir jogo de Copa, só quando o musgo crescer na rocha, mesmo.

E os sinos vão dobrar por quem? O maior agrado aos deuses deste grupo é da Dinamarca: o time tem o mesmo técnico há dez anos, uma unanimidade. E mais: é o velho Morten Olsen, que jogava em dez posições diferentes, coisa que todos os deuses amam. Japão tem um brasileiro naturalizado no elenco, em geral um bom sinal, mas cometeu o velho erro de naturalizar jogador da nacionalidade errada para a posição – o nipo-japa-brasileiro do time joga na defesa. A Holanda vai agradar os deuses por fidelidade à vocação – o futebol que deu biaba em cachorro grande na última Eurocopa é pra frente, bola no chão, com bastante drible. Camarões... Não sei. Os deuses normalmente gostam muito de craque, e Camarões de 90 continua sendo o melhor africano de todos os tempos, mas... Será? Pode muito bem ser que sim. Terão de mostrar muito respeito a suas divindades. Há disposição divina em ajudar Camarões, sem dúvida, como no caso de Gana.

Como a coisa vai Holanda e Dinamarca estreiam equilibrados no confronto direto, valendo em favor da Holanda o belo futebol que vem jogando no contexto europeu. Bom para Camarões, que pode sair na frente e ganhar tranquilidade. Depois, Holanda dá biaba em Japão enquanto Dinamarca e Camarões se estapeiam, com Camarões podendo pular na jugular contra uma grande vantagem histórica pró-Dinamarca, num belíssimo embate de teorias. Pra fechar, Dinamarca vai forçar tudo contra Japão, tentando arrancar uma classificaçãozinha, enquanto Camarões tenta dobrar a Holanda, algo difícil.

Alto PDM, de qualquer modo... a critério do freguês. Holanda pode nem ganhar o grupo, se ocorrer de Camarões e Dinamarca se resolverem com clareza entre si na segunda rodada – isto é, se um dos dois ganhar bem; mas não parece provável. O potencial de dar merda da aposta é definido pela oposição entre intangíveis fortes versus um time com craque, um confronto testador de hipótese – quem acreditar em camisa, escolhe Dinamarca sem pestanejar, mas quem acreditar em África, craque e futebol bonito, Camarões na cabeça. Quem acreditar em Papai-Noel-fora-de-época escolhe Japão para alegria do resto do bolão. Felizmente sempre tem esse cara.

Grupo F: Itália, Paraguai, Nova Zelândia, Eslováquia

Grupo bipolar e enxadeiro Este grupo é o mais fácil de se prever: são dois times muito fortes, Itália e Paraguai, e dois times muito débeis, Eslováquia e principalmente Nova Zelândia. Não tem muita idéia, não – trata-se apenas de saber quem passa em que posição. Parece que a FIFA tacou aqui quem não tinha onde pôr, ou fez um grupo cujo atrativo é que vai sair bastante pancada. É, é isso: como diz o Chico, só tem enxadeiro e o mais provável é ver o povo abrindo a caixa de ferramentas.

Fatos e fatores Tirando a Copa de 38, a Itália nunca defendeu bem seus títulos, talvez por soberba. Paraguai foi jogado para os leões com Suécia e Inglaterra numa Copa europeia em 2006, mas tem feito bonito em Copas, é claramente o importante terceiro-sul-americano e é muitíssimo mais time que Eslováquia e Nova Zelândia. Tem biabas sobre Brasil e Argentina no currículo. Já a Eslováquia... é melhor que a Eslovênia – verdade, ganhou o grupo das eliminatórias sobre ela. Mas o grande feito do país foi ter eliminado a República Tcheca do torneio, o que torna sua participação na Copa um mero detalhe. Nova Zelândia... Esporte errado. Sem comentários.

Os caras são duros Os intangíveis deste grupo são muito simples. Com a história do Cabañas, tremendo craque, ter tomado tiro na cara, Paraguai desponta como um potencial conto de fadas, mas o problema é que o Cabañas não morreu. Mesmo assim, o time ainda tem bons reservas para a posição e continua sendo uma equipe bem estruturada. O pior fator contra a Itália desta vez é que seu grupo é tão fácil que sua trajetória de sofrimento pela Copa, que costuma trazer seus melhores resultados, vai ser tranquila. Eslováquia... Nova Zelândia... Ah, vá catar coquinho.

E a Nova Zelândia nem para fazer o haka A presença da Nova Zelândia desperta uma dúvida teológica: se o time de futebol fizesse o haka antes do jogo, aquela dança meio-maori-meio-polinésia sinistra que supostamente agradece aos deuses pelo brilho do sol e das estrelas e pela generosidade do universo, mas na prática serve claramente para apavorar o adversário, ele funcionaria como no rúbgi? Creio que não muito, os deuses são outros. Mas não saberemos: este time kiwi bunda-mole nem sequer faz haka, o que será punido pelos football gods. Além do que, é um país-que-chama-futebol-de-soccer. Prevejo três lavadas e nenhum gol pró. Da Itália, os deuses esperam sacrifícios, e neste grupo não vão encontrar: o grupo fácil foi o maior castigo que poderia ter recebido. Quanto à Eslováquia, não tinha nada que ter se separado da República Tcheca – vai pagar para sempre o preço da blasfêmia. Os políticos deviam ter pensado nisso. Já o Paraguai... Difícil. Não dá pra saber como os deuses vão lidar com a história do craque-que-tomou-tiro-na-cara. O potencial é enorme, mas, novamente, não é como se o Cabañas tivesse morrido.

Caspita! Itália abre contra Paraguai. O que der, dará. Candidato a empate. Nova Zelândia leva pau da Eslováquia no clássico da futilidade, por motivo de camisa e inferioridade teológica. Depois o Paraguai pega a Eslováquia – viu só, a trajetória do Paraguai não é tãããão fácil assim; enquanto isso, Itália e Nova Zelândia se candidatam a protagonistas do jogo mais feio de todos os tempos. Por fim, Paraguai se classifica sobre Nova Zelândia e Itália sobre Eslo... Váquia. Eslováquia.

La garantía soy yo Paraguai tem tradição recente em Copas e pode até papar Itália. Pode sim, não seria do outro mundo, a Itália adora essas coisas e desde Julio Cesar nunca se deu muito bem na África. Aposta muito da decentinha, essa daí. Tirando esta variável importante, qualquer outra coisa seria caridade. Eslováquia sobre Paraguai?... Chance de uma em cem, vai. A FIFA certamente quer compensar o Paraguai por ter sido boi de piranha em 2006.

Grupo G: Brasil, Coreia do Norte, Costa do Marfim, Portugal

Raios, pá! Cascudo… Há que se decidir: Portugal ou Costa do Marfim. Costa do Marfim ou Portugal. Portugal ou Costa do Marfim. Costa do Marfim ou Portugal. Portugal ou Costa do Marfim. Costa do Marfim ou Portugal. Portugal ou Costa do Marfim. Costa do Marfim ou Portugal... Raios!

Pois... Brasil é Brasil, e Brasil passa. É assim que é. Resta portanto encontrar revelações entre Portugal e Costa do Marfim. E o que sai desta peneira é o seguinte: Portugal já passou de um grupo cascudíssimo em 66 (com Brasil e Hungria) e já não passou de um grupo cascudo em 86 (Polônia de Boniek e Inglaterra de Lineker, com direito a papelão por causa de premiação); já morreu em grupo fácil em 2002 (Estados Unidos! Coreia do Sul!), e já passou em grupo fácil em 2006 – Portugal é sensível ao efeito Copa-na-Europa, portanto. Costa do Marfim só tem uma experiência, morrendo no Grupo da Morte de uma Copa europeia, geralmente mais fiel às tradições, em 2006. É um time sem quase nenhuma camisa, diferentemente de Portugal, mas uma tentação ao apostador: é um bom africano e tem efeito-craque.

... é difícil de antever Costa do Marfim é uma incógnita. A maior de todas. Mais do que isso: não há nada que sugira Portugal ou Costa do Marfim na história das Copas, das seleções ou dos confrontos análogos. Nada mesmo. Portugal é errático e Costa do Marfim, neófito. E pior: é o jogo de estreia. Nem os detalhes revelam nada – os dois times têm craque, e nenhum dos dois tem goleiro. Uma boa pergunta: qual dos dois tem mais chance de tirar um empatinho do Brasil? Costa do Marfim, por ser africano e meio mais misterioso, ou Portugal, por nos pegar no terceiro jogo, sendo meio freguês (não em Copas) e com efeito África pró-Brasil? Detalhinho: Coreia do Norte já papou até Itália em Copas. È vero. 66. Um a zero. Bem ou mal, não se discute com a história. Mas... Ora. É a Coreia do Norte.

Papelão pega mal no Olimpo Os deuses gostam muito do Brasil, um raríssimo país-cuja-tragédia-nacional-é-uma-derrota-de-Copa-do-Mundo. Temos sempre tudo a nosso favor - exceto desta vez o fato de que vamos sediar a próxima Copa (o que pode tornar muitos deuses propensos a ajudar outros times nesta) e o fato de que a reforma do circuito de Imola diminuiu muito a chance do Massa bater na Tamburello antes da Copa (como em Senna, 1994), o que teria grande potencial. O ponto mais revelador de toda a análise é que todas as divindades reprovam o papelão que a Costa do Marfim fez no começo do ano para derrubar o técnico, uma espécie de Felipão bósnio. E se time se opondo ao treinador em ano de Copa é muito mau sinal, treinador dando desculpas antecipadas é pior ainda. A baderna faz franzir as sobrancelhas no Olimpo, e a revelação deste fato pode ser captada por nós, mortais, na forma de um impactante fator multiplicador de PDM, capaz até de reverter o efeito África. Menos importante, mas real, é que as divindades gostam de países com nome de recurso natural, como Brasil e Costa do Marfim (e Argentina). E ajudam países governados por déspotas a se superarem – com um nadinha a mais de futebol, alguns deuses até quereriam dar um empatinho pro Querido Líder Kim Jong-Il fazer um feriado. Mas neste grupo não vai ter como.

E como é que a coisa vai? Primeiro tem o jogo da verdade, Portugal x Costa do Marfim. Esse é cascudo de verdade. Brasil começa sussa enfileirando os discípulos do topetinho. Depois, Brasil pega Costa do Marfim – que efeito tabela em favor de Portugal, hein? – enquanto Portugal tenta por a mão na vaga contra os comunistas. Se o Brasil já estiver classificado, Portugal passa mesmo que precise nos incomodar – um empatinho do Brasil é muito mais provável no terceiro jogo do que no segundo, historicamente, sem falar que países governados por déspotas, depois de perder dois jogos, dão absolutamente tudo no terceiro. Mas se o grupo chegar aí embolado, o que será difícil, talvez Brasil e Costa do Marfim classificados, em jogos simultâneos emocionantes e de final feliz para um bom africano.

Conclusão Costa do Marfim está com uma tabela meio de boi-de-piranha-já-que-o-país-é-meio-porcaria de novo e vai sofrer com a obrigação de estrear bem contra Portugal e depois segurar Brasil (para nosso entretenimento). Se Portugal fosse confiável, Portugal na cabeça. Se a Copa fosse na Europa, Portugal na cabeça. Mas não há tantos motivos para botar fé na terrinha. A Copa é na África. Portanto... Liberdade ao apostador, valendo lembrar aqui aquele útil algoritmo básico da teoria dos investimentos esportivos internacionais futuros: na dúvida, dá a) camisa; ou b) o país menos desorganizado. Ou seja: Costa do Marfim é a opção high-risk, high-reward.

Grupo H: Espanha, Suíça, Honduras, Chile

O grupo É um pouco geopolítico, também, pois terá um jogo entre um time que não reconhece o governo do outro – a Espanha jamais reconheceu o governo de Porfirio Lobo, eleito nas últimas eleições avacalhadas de Honduras (digo “um pouco” pois nenhum grupo que tenha a Suíça pode ser considerado geopoliticamente muito carregado, mas também porque neste mundo bunda-mole de hoje em dia, esse negócio de Copa do Mundo ser geopolítica anda meio démodé. Que pena). Fora isso, muito equilíbrio e a responsabilidade de um bom time do Chile de prevalecer sobre a sem camisa Honduras e o ferrolho suíço, capaz de proezas como ser eliminado sem tomar gols. Inclusive a Suíça parece deslocada neste grupo de times boleiros.

Fatos e fatores Vamos lá: Espanha é um dos melhores times do torneio e quase me arrisco a dizer que é favorita (grande coisa). Além disso, não é um país de muitas zebras – em geral, ganha dos piores e perde dos melhores – e deve ganhar de sua freguesa Suíça e de suas ex-colônias. O Chile é um time bacana: o técnico é el loco Bielsa, tem o chatíssimo Humberto Suazo na frente, el mago Valdivia... Pode muito bem passar. Historicamente tem um retrospecto em Copas praticamente idêntico ao da Suíça, que continua aquele saco. Já Honduras é um time muito do honesto, uma espécie de Costa Rica desta Copa – joga aberto para fazer gols e também levar, mas é melhor – e já arrancou até empate contra a Espanha na própria Copa da Espanha, em 82.

Intangíveis Pois bem... Espanha entra no ano da Copa tendo perdido um jogo nos últimos 44 (Estados Unidos – que talento para a decepção, hein?). Isto inclui Eurocopa, Eliminatórias, Copa das Confederações, eliminatórias para Eurocopa... Não é brinquedo não. A pergunta que não quer calar é a capacidade do ferrolho suíço de parar o ataque do Chile, segundo mais prolífico das eliminatórias sul-americanas. Neste quesito, é possível que o efeito África mate a Suíça. Honduras pode cair nas graças da galera com seu futebol alegre, e a partir daí dar uma pentelhada nos suíços no terceiro jogo.

...e os deuses? A Espanha está com créditos-arbitragem depois da roubalheira da Copa de 2002, em que o professor FIFA anulou três gols legítimos para avançar a anfitriã Coreia do Sul. Isto pode ser um fator divino, especialmente mais adiante no torneio. Os deuses podem ajudar o Chile por ter El Loco como técnico (a maioria adora essas papagaiadas), mas principalmente como técnico do Chile, time que sempre dá problema (v. Batalha de Santiago, Roberto Rojas...). A Suíça tem o “General” Hitzfeld, com nome de assecla de Hitler, e provavelmente não será prejudicada porque não tem personalidade suficiente para isso. Já Honduras é um país-governado-por-um-golpista-direto, algo que coloca os deuses em seu favor – eles gostam mais dos paisecos badernadíssimos do que dos países maiores badernados, é incrível. E tem nomes fantásticos no elenco, papagaiada que às vezes contribui para um resultadinho: o capitão é Guevara, na frente tem Georgie Welcome, La Pantera Suazo, um clássico de León no meio...

A dinâmica da parada É a seguinte: Chile começa ganhando moral contra Honduras, e Suíça perdendo moral contra Espanha; depois, Chile tenta se crescer sobre um ferrolho que deve ter sido arrombado, enquanto Espanha se diverte contra os hondurenhos, que apesar do futebol alegre não são bonzinhos como os costa-riquenhos e darão tudo para desandar a paella. Se Chile já tiver se garantido, faz jogo-treino contra Espanha, ou então tem a vantagem de pegá-la já tranquilizada. Mas o pior é que Suíça talvez não ganhe de Honduras. Tomara.

Conclusão É wishful thinking? É. Mas vou de Chile. Que se dane o ferrolho suíço.

Daí em diante...
Daí em diante é cada um por si. Ora!...

sábado, 1 de maio de 2010

A Copa da África

Por Marílio Wane, sociólogo e príncipe moçambicano, vizinho da África do Sul, correspondente do Retranca Crônica direto de Salvador

Copa do Mundo taí e dessa vez vai ser num país africano, pela primeira vez na História. Por esse simples fato já podemos esperar por uma competição diferente em todos os sentidos.

O grande lance é que além de um país africano se tornar o centro das atenções do mundo inteiro por um mês, a Copa traz uma oportunidade única de “a África se mostrar para o mundo”, digamos assim. A novidade nisso é que normalmente as imagens veiculadas sobre “África” - um verdadeiro monstro geográfico, populacional e cultural - na grande mídia global são produzidas a partir de fora, quase sempre sob um olhar ocidental. Aquela velha história.

O resultado disso é que, no senso comum, as pessoas passam a associar a “África” a esse pacote de guerra-fome-doenças-selvageria produzido diariamente pelo antropólogo William Bonner. Sem falar nos milhões de programas sobre hábitos dos leopardos “no coração da África”. Odeio cada um deles! Nada contra os belíssimos felinos, o negócio é que a repetição constante dessas imagens reforça a distorção sobre a realidade atual do continente.

Bom, era importante colocar isso antes de falar sobre o que significa uma Copa na África, sobre que outros fatores envolve. O país sede - África do Sul - é o mais rico do continente, altamente industrializado e na verdade, o único que atualmente pode sediar um evento desse porte. Quem não conhece vai se surpreender com as imagens de modernidade que o país vai fazer questão de mostrar ao mundo. Os estádios, por exemplo, dão de 10 a 0 em qualquer um daqui do Brasa agora...

Resumindo, trata-se de uma oportunidade única para se ampliar o conhecimento do que se entende por “África”, já que o futebol é diversão garantida em todo o planeta. Todo mundo vai ver. É claro que vai haver uma grande filtragem do que vai se mostrar - e do que não vai se mostrar! - mas em tempos de twitter... E também é verdade que a África do Sul é um país atípico no continente, mas como vai funcionar como uma vitrine, pode ajudar a mudar a idéia que muita gente faz desta parte da Terra.

Existe sim muita pobreza e violência, mas sempre retratadas pelas lentes da CNN, BBC e amigos da Rede Globo. O que a Copa traz este ano é a possibilidade de ampliação do que essas lentes mostram, em direção a uma realidade africana mais complexa e por isso mais interessante. O principal mecanismo de distorção dessas lentes é apresentar a “África” como uma entidade única, nivelando a enorme diversidade que existe no continente, em todas as esferas.

E aí, o único jeito de remar contra a maré é tomar como referência o ponto de vista dos próprios africanos e nesse sentido, a oportunidade é a melhor possível. É justamente aí que entra o futebol: toda essa complexidade interna africana vai aparecer assim que a bola começar a rolar. As diferentes reações dos torcedores africanos serão amplificadas pela visibilidade mundial do evento, destacando rivalidades e alianças internas cultivadas pelas mais diversas razões ao longo da História.

Muito em função da luta contra o colonialismo, de cara já rola uma solidariedade entre os países africanos e dá pra dizer que a princípio, a maioria dos africanos torce pras seleções do continente. Porém, há nuances aí. Por exemplo, a Nigéria é um país cuja imagem sofre rejeição crescente dentro do contexto africano, sobretudo por causa do narcotráfico e outras atividades criminosas que se alastram para outros países. Vai ter torcida contra em alguns lugares, mas no geral, apoio.
A Argélia se encontra em um contexto particular, a chamada “África branca”, composto pelos países do norte, mais ligados ao universo árabe-islâmico. Na hora do gol, a coreografia é em direção à Meca as suas vitórias serão comemoradas do Marrocos ao Oriente Médio. Aqui temos uma confluência de fatores geográficos, religiosos e raciais, todos operando ao mesmo tempo pra acirrar as rivalidades. E mesmo dentro desse universo, tem briga. Todos se lembram dos confrontos entre Egito e Argélia na última Copa das Nações Africanas, que deu até em rompimento diplomático. O Deserto do Saara vai virar mar perto do que os “faraós” vão secar!

Já o meu país - Moçambique - não vai participar da Copa, mas a reação dos compatriotas também indica outras complexidades internas. Os moçambicanos acompanham o futebol português e torcem apaixonadamente para os seus times, Benfica, Porto e Sporting. É um caso clássico de herança cultural colonial, que deve ocorrer em outros países, inclusive. A princípio, este fenômeno gera uma simpatia pela seleção portuguesa também, mas não necessariamente... Algo me diz que a solidariedade pan-africana vai prevalecer, por exemplo, no jogo contra a Costa do Marfim, logo na primeira fase. Foi assim em 2006, contra Angola. O jogo Brasil x Portugal vai ser particularmente interessante por lá, até pra registrar a crescente influência brasileira atualmente. Tem gente que até fala em “nova colonização”. Mas aí já é outra cachaça!

Dentro de casa, para os sul-africanos, brancos e pretos, é só festa! Tome vuvuzela! Reconhecem que seu time é limitado e vão torcer até onde der e também pelos outros africanos. A Copa das Confederações 2009 já foi uma prévia disso, onde a torcida mais faz celebrar a realização da Copa no país. Mas Inglaterra e Holanda (os antigos colonizadores europeus) terão as suas torcidas locais, visivelmente representadas... Alguns com saudades do apartheid.

Enfim, todas essas disputas regionais vão mostrar ao mundo um continente multi-facetado, nada a ver com as generalizações que normalmente se faz. Longe de ser um lugar isolado e remoto da Terra, a África está conectada à Humanidade desde a sua própria origem. Né mole, não. E se a maioria de seus povos hoje convive com a pobreza e a violência, isto está diretamente ligado à forma como essa conexão se dá nesse mundo globalizado... Neo-liberalizado e neo-colonializado pra maioria.

Enfim, a partir de junho, a Humanidade (afinal de contas, mesmo quem não gosta de futebol assiste a Copa, né?) vai ter uma rara oportunidade de voltar as atenções para o seu próprio berço. Momento interessante até para refletir sobre a sua situação em que se encontra atualmente e até mais além: o que nos liga como humanos? Desconfio que seja algo parecido com uma bola...

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O Lado B do Rey das Copas

* Por Chico Garcia

Dizem por ai que eu minto, mas tudo o que vejo eu conto sem recauchutar. Não vou nem barganhar crédito seu, pois nesse mundo não há bicho que se faça solto e desconheça que catimba argentina é a pior que existe. Então vou contar um fato estranho que comigo se assucedeu, aí quem quiser que acredite.

Vagava por Buenos Aires e, num imprevisto do azar, tive entreveros com os homens da lei. Não foi minha culpa, sabe como é, quando joga fora de casa tem gente que atrai polícia igual carniça atrai urubu.

Só escapei e dei no pé por que fui ajudado por um malandro da pesada, cheio das artimanhas, que facilmente despistou os meganhas e com toda certeza o sinistro tinha laços com o belzebu.


Agradeci pagando umas cervejas, como faz um sujeito decente, e o malvado retribuiu com um papo beleza. Acendeu um Marlboro e enquanto dava uns tragos contou que era chefe da Torcida do Independiente, lá de Avellaneda, onde era conhecido apenas como El Diablo.

Logo desafiei as memórias daquele filho do cão sobre a equipe indigesta dos Rojos, que reinou e fez história na América. E de quebra e de graça, o parceiro El Diablo garantiu saber toda a verdade sobre esse temido esquadrão.

Ficará eternamente escrito que aquele era um scratch de raça e talentos, sendo que pelos anos de setenta e poucos não havia louco em decente estado de sobriedade que quisesse enfrentar o Independiente, o time mais encrenqueiro de todos os tempos.

Diz-se por lá que todo time começa por um grande canalha, e o goleiro Santoro entrava em campo com uma navalha escondida na meia e guardando areia no calção. Ai quando vinha o atacante na área... Terra no olho, malandro!

A zaga era mais malvada que escolta de bandido valente. Tinha um sujeito chamado Comisso que era tão feio que fazia carro dar meia volta e gente desistir de atravessar a rua. Quando o tal do Comisso fazia cara de bravo, dos avantes medrosos só se ouvia "vai que é sua, vai que é sua".

Já um outro cabra, um uruguaio chamado Pavoni, quando nasceu dava tanto coice no berço que quase matou a avó de susto. E o sujeito era tão, mas tão mau, que quando foi batizado o padre até deixou cair o terço, de tanto medo daquele filho da noite.

El Diablo me contou, mas não sei se procede, que quando os Rojos foram campeões do mundo Pavoni e Comisso escaparam de desfalcar o time por um triz. Isso por que num jogo no campo do Boca, caiu a luz por um segundo e os bandidos não deram toca: Sumiu até o relógio suiço do juiz.

Só não pegaram ninguém no pulo porque bandido mau também tem cobertura, ta ligado? Quando a defesa entrava em apuros podia contar com El Zurdo López, um lateral invocado que ouvia mal, mas era malícia pura. O tal esperto tinha um nariz maior que tromba de elefante e dizem que abandonou a bandidagem por pura preguiça, pois gostava de viver igual tatu, na maior sombra.

O gatuno da esquerda, que já veio ao mundo de bigode, não se sabe como pode tinha mais de dez identidades. Ficou conhecido como Raiomondo, mas vá saber a verdade. O que se sabe é que o sujeito tinha fama de boa praça e levava a vida no ócio, e para botar comida na mesa ou cerveja cerveja no copo agia como mestre da trapaça, arte de enganar o próximo.

Cheia de manhas e não menos milongas, a quadrilha da meia cancha ficou famosa no gueto de Avellaneda por reunir todas as destrezas de um gato preto.

El Negro Galván e Mago Maglioni fingiam ter a inocência de uma virgem donzela, sempre iludindo o juiz naquela do juro que não faço mais. Ai quando o mané virava de costa era só fair-play pra baixo da canela, como bom argentino, versado em malvadeza. Até hoje os dois fazem o Mirandinha sofrer dormindo de luz acesa, assustado igual frango solto em supermercado.


De volante, ou meio zagueiro, como diz meu chegado Hermano Penna, quem entrava em cena e tomava conta do jogo era o milongueiro mais conhecido da boemia portenha, o finado Jose Omar Pastoriza. El Pato não participou do titulo mundial, mas já virou até verbete de dicionário, ganhou licença de professor e por décadas ministrou aulas de catimba na Universidade de Rosário, onde é reconhecido como o inventor da cera.

Agora, se o jogo fosse difícil mesmo, ou se o juiz estivesse com qualquer sacanagem, aí o lance era com o Manoel Sá, sujeito matreiro que não dava pontapé e ainda assim se tornou o maior campeão da história do clube. O que foi o que não é, só se sabe que o primo do Manoel era um tal de Obregon, afamado pelas curriolas de Santa Fé como El Covero. Nunca foi provado, mas corre pelos labirintos da justiça um processo que acusa o tal cruel de dar cabo em um ponta direita entortador de coluna, que era uma pedra no sapato do Gago Manoel.

E pra completar esse covil de ladrão, aquele bando também tinha seus cabeças, os grandões da parada. Ali quem mandava e desmandava sem perdão eram Bochini e Bertoni, que conquistaram o povo com os gols e belas jogadas, mas atuavam mesmo como os chefões do crime.

No gol do titulo Mundial de 1973, se diz à boca pequena que Bochini revelou aos amigos ter entrado em campo com um alfinete de costura escondido, com o qual espetou o baço do zagueiro italiano com tamanha fúria que este, totalmente perdido, só assistiu Bocha fazer o gol do campeonato.


Assim-assim com o Caveira de Medelin e o time do Metralha, lá do Morro do Alemão, esse foi o bando mais criminoso que já bateu uma pelada, a turma mais malvada que já fez parte de um time de futebol. E usando das milongas e mumunhas, comandada por hermanos versados nas mais diferentes artes da catimba, uma malandragem portenha do mais alto grau fez do Independiente de Avellaneda o maior campeão da América.

E é isso aí. Quem for à Buenos Aires em breve poderá pagar umas Quilmes ao meu chegado El Diablo e certamente ele ajudará qualquer um com os fardados no encalço, afim de um bom rapé ou necessitando trocar dinheiro falso, pois conhece tudo sobre o submundo da cidade. Como um bom jogador de conversa fora, gosto de enfeitar a jogada e até aumento a história, mas nunca minto e digo que tudo que invento é baseado em pura verdade.

* Em sua era "dourada", o Independiente de Avellaneda faturou os Metropolitanos de 1971 e 72, quatro Libertadores da América entre 71 e 74 e mais o Mundial de 1973.

**Entre feitos e glórias, estão os três gols marcados por Maglioni em apenas 90 segundos em partida do Metropolitano de 1973, marca registrada no livro dos recordes.

*** Embora algumas das informações aqui contidas sejam fruto dos conhecimentos singulares de meu parceiro El Diablo, a fama de time mau procede e ajudou a criar a mistica da catimba no futebol portenho.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Union Berlin

uma participação ipsis literis do ilustre Daniel Schultz, correspondente global do Retranca Crônica (blog muito do retrancado mas que não tá morto, não).

Cara, descobri outra pérola do mundo da bola!

Foi numa conversa em Berlin com um torcedor do Stuttgart, o Basti, que entendia bem do assunto. Muito esclarecedora sobre o futebol alemão, por sinal. Passei a ter muito mais respeito. Sempre achei estranho o fato de a Alemanha ser o país mais rico da Europa, sete finais de copa, grande popularidade do futebol e ainda assim ter seus clubes se dando tão mal no cenário internacional. E mais estranho ainda o fato de só haver uma potência clubística, já que a natureza do jogo exige a polarização da população. Acabei descobrindo um perfil de torcedor que mantém a pureza do ideal bem acima de resultados (creio que reflexo do pós-guerra), e a polaridade acaba ficando Bayern vs anti-Bayern. Há uma enorme rejeição ao clube rico e comercial. Há uma enorme rejeição ao Hoffenheim sem história e com injeção de dinheiro pessoal. E por que a liga alemã não tem o peso da espanhola? Porque há uma regulamentação muito mais rígida com as finanças dos clubes. Nada de Berezovskys, Berlusconis, Abramoviches ou petrodólares. Nada de clube endividado. Nada de "donos" de clube. Passei uma certa vergonha quando estava rasgando elogios ao Tévez e ouvi: "mas foi comprado com dinheiro sujo, não foi?" Respondi que pagamos nossos pecados na segunda divisão. Falei que os responsáveis estavam a caminho da cadeia (uma mentirinha ocasional não faz mal a ninguém). Aprendi que a Alemanha tem a maior média de público da Europa, que o ingresso ainda é barato e que o dinheiro dos contratos de TV são mais distribuidos, inclusive a divisões inferiores. Num cenário como esse florescem os St. Pauli da vida. E por que os jogadores permanecem no país? "É uma questão de qualidade", disse Basti. "Atualmente só o Ballack é diferenciado. A força da seleção está apenas no conjunto".

E por que Berlin, a capital e maior cidade, não tem uma equipe de ponta? Berlin foi uma cidade complicada politicamente no pós-guerra. O futebol do leste como um todo enfraqueceu frente ao oeste e a parte ocidental da cidade tinha grandes dificuldades logísticas. O "clube grande" da cidade, o Hertha, hoje ocupa a última posição da tabela e não goza de muita popularidade. O perfil elitista de direita de seus torcedores contrasta com a cultura underground da cidade. "Mas se você estiver interessado, na segunda-feira vai ter estádio lotado para o jogo do 1. FC Union Berlin contra o Kaiserslautern, o líder da segunda divisão". Claro que interessa. E lá vamos nós para Köpenick. O Eisern Union (união de aço) surgiu em 1906 como clube da classe trabalhadora, se opondo aos times elitistas, e teve seus sucessos antes da guerra. Quando já em 1950 foram proibidos pelo governo comunista de viajar ao ocidente para participar da copa da Alemanha, parte do clube pulou a cerca e fundou uma filial ocidental de mesmo nome. O clube então jogava nos dois lados da cidade, nos dois campeonatos. No leste o Union era o grande rival do Dinamo Berlin, o time da Stasi, e virou símbolo de oposição ao regime autoritário. Na Berlin unificada acabou reunindo uma apaixonada torcida idealista. Fiel às origens proletárias, anti-fascista, anti-repressão, não- conformista. O estádio de Alte Försterei, para umas 20.000 pessoas, foi reconstruído voluntariamente pelos torcedores em tempos de séria crise financeira depois da queda do muro. Chegando lá, a torcida toda em vermelho e branco cantava o hino do time, composto por ninguém menos que Nina Hagen, torcedora símbolo do clube. O clima dentro do estádio era contagiante. A torcida mostrava muito mais empolgação que a do jogo do Madrid no Bernabéu, a outra partida que eu vi na Europa. Cantava em pé, apoiando o time a partida inteira. Obviamente que como sul-americano convicto não vou me curvar à intensidade de nenhuma torcida européia, mas algo diferente realmente me chamou a atenção. A torcida estava ali por uma afinidade política e cultural, embora não faltasse interesse na partida em si. Empurrava o time incondicionalmente, independente do resultado. O time medíocre se esforçava agradecido. Tremenda manifestação de união ideológica! No final a derrota por 2x0 para o adversário muito superior pouco importou. Durante os minutos finais da partida, durante a volta da equipe junto às arquibancadas agradecendo o apoio e durante a saída do estádio até o metrô, a torcida não parava de cantar o moto do clube ao ritmo de palmas: "FC Union, unsere Liebe, unsere Mannschaft, unser Stolz, unser Verein, Union Berlin, Union Berlin!".

Pelo que eu entendi é um fenômeno semelhante ao do St. Pauli, mas um pouco menos "baladinha", menos difundido e num clima mais sério. Em tempos de time entregando jogo, torcida agredindo jogador em porta de banco, conselheiro levando arma pro vestiário, todos comportamentos que, embora eu discorde, fazem parte do mundo futebolístico em que eu fui criado, me surpreendeu essa filosofia alemã de ir ao estádio só pra ver o seu time jogar. De ir ao seu estádio de primeiro mundo e dizer com orgulho: esta aí um time que representa bem a minha comunidade. Bem administrado, com dinheiro limpo, com preocupação social. O que vier além disso é lucro. E não se importam com a Champions League.