terça-feira, 22 de janeiro de 2008

O Torneio dos Pênaltis de Uauaçu

Já viajei bastante por esse mundaréu chamado Brasil e sempre fui bem acolhido.

Nos cantos soturnos do mato fechado, pitei fumo de corda e bebi das fontes mais sábias, ouvindo da memória do povo as bonitas histórias de nossa gente.

Entre umas e outras, proseei com figuras altivas das reentrâncias maranhenses, dos pampas sulinos, dos igapós isolados do Rio Araguaia e das terras secas e árduas do Raso da Catarina - e as ouvi, em alto e bom tom, narrar jogadas tão belas e verossímeis quanto o famoso gol de Pelé na Rua Javari.

Mas de todas as estreitas arestas e roçados que minhas pernas alcançaram, foi apenas na Vila de Uauaçu que eu vi o povo se reunir às centenas só para bater pênalti.

Sim, pênalti.

Às margens do longínquo lago Uauaçu, no caminho pros confins da Amazônia, faça chuva ou faça sol, duas vezes por ano esse povoado, que sobrevive da pesca e da coleta de castanha, assiste ao evento mais aguardado da região: o Torneio dos Pênaltis de Uauaçu, uma pérola do folclore futebolístico brasileiro que reúne mais de 60 duplas num empolgante mata-mata, para decidir, em um dia inteiro, quem são os reis do pênalti no Baixo Purus.

Bom, mas antes que considere este relato uma simples história de pescador, deixe-me esclarecê-lo de que estive em Uauaçu em minha viagem pelo Rio Purus, tortuoso afluente do Amazonas, descrito com maestria pelo nosso grande cientista-escritor Euclides da Cunha. E como de habitual, uma vez lá resolvi me inteirar sobre a tradicional pelada de fim de semana, que acontece domingo, invariavelmente pelo Brasil inteiro, no campinho local - não há cidade ou vila que não tenha o seu -, reunindo os craques das redondezas.

Cervejinha, dominó (o verdadeiro, que dá pontos nos múltiplos de cinco), algumas doses de cachaça com jambo e logo fui convidado para participar de um torneio, justamente naquele final de semana. Papo vai, papo vem e, já ligeiramente alto, descobri, porém, que não haveria nenhum jogo daqueles de transpirar sangue (já tão cobiçado pelos morcegos vampiros do Uauaçu), mas sim uma gigantesca eliminatória em que duplas formadas por goleiro e batedor se enfrentavam com três pênaltis para cada lado, até a grande final.

Seria uma simples diversão não fosse realmente uma competição séria, com gente de todos os lados disputando um único e cobiçado troféu: a maior tartaruga que fosse encontrada entre os retorcidos igarapés da mata nos dias que antecediam a festa.

Incrível. No domingo todos os caboclos, índios, mulheres, crianças, velhos, bêbados e sóbrios da região vagavam pelas proximidades do campo, enquanto as duplas discutiam suas estratégias e as apostas eram recolhidas.

Foi quando apareceu diante de mim um índio forte, carregando mais de cinco quilos de ouriços de castanha, falando alto, sem que eu entendesse sequer uma palavra. No entanto, logo soube que não era nenhum rival me intimidando, mas sim Marivaldo, meu parceiro de equipe.

Combinamos que ele seria o goleiro e eu cobraria os pênaltis, formação que logo nos deu a primeira vitória. Foram emocionantes e acirradas disputas entre verdadeiras lendas do pênalti amador, cheias de chutões, macacos velhos daqueles que sabem desde pequeno aonde a onça bebe água, paradinhas e catimbas das mais diversas. E entre mortos e feridos, sobrevivemos até a semifinal. Talvez a sorte tenha me abandonado, talvez os deuses da floresta tivessem outros planos, mas caímos de pé, sob aplausos do público.

Aos vencedores, a tartaruga.

De noite, desfrutando da paz que nos leva e guarda e ao som da irritante banda Calipso, saboreei um gordo pedaço da taça, elegantemente dividida.

Soube também que nenhuma das tentativas do Ibama e Funai (entre outros órgãos governamentais, ong’s e institutos), para discutir o que quer que fosse, recebia representantes de tantos povoados e tribos como o Torneio dos Pênaltis de Uauaçu.

Mais algumas doses de cachaça com jambo e logo estávamos falando até de política; e de que sábio é aquele que, experimentado nos calejos e ternuras da vida, reconhece não haver melhor momento para se discuti-la do que após uma partida de futebol.

Aprender a chutar uma bola é incorporar uma das formas de expressão mais autênticas de nosso povo. Pois nesse humilde gesto, que coloca lado a lado o rico e o pobre, o culto e o bruto, o forte e o fraco, sem que nenhum deles, jamais, se sinta no lugar errado, apreende-se mais do que em cem discursos.

“Eu conto histórias. Histórias que eu vi com esses olhos que a terra há de comer um dia, ou histórias que eu ouvi, no buxixo das curriolas. E juro por essa luz que me ilumina, que conto as histórias sem aumentar um ponto. Se algum talento eu tenho, por desventura, é de ver e ouvir a gente minha” *

* Em memória do saudoso Plínio Marcos, poeta, escritor e amante das pequenas belezas mundanas, tão presentes no dia a dia do povo brasileiro

9 comentários:

Anônimo disse...

E ai vc faz o roteiro?
Belíssimo filme!
Gostaria de estar lá e ter arriscado uma daquelas paradinhas que nunca dão certo!

abraços

Zé Pedro Fittipaldi disse...

Espetáculo!
Esta histórica, fantástica não fosse verídica, ainda vai dar o que falar.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...

bom, para aumentar o clima, recomendo q localizem Uauaçu no mapa:

http://www.traveljournals.net/
explore/brazil/map/p234142/lago_uauacu.html

e, se um dia estiverem de passagem por aquele fim de mundo, aproveitem e paguem minha conta na venda.

Abs

Raul Zito disse...

Nem uma fotinho da cena pra açucarar? Onde estão os fotógrafos nessa hora?
Não havia nem um cacique de cocar e iphone?
O álibi das boas histórias é a ausência de imagens..

Anônimo disse...

putz...

ainda nao era tempo de Iphone

mas Léo, com sua câmera, estava a passear na floresta com um moreno alto e forte, fazendo sabe-se lá o que...

Anônimo disse...

texto costurado
ponto por ponto
texto tecido
colorido

Anônimo disse...

à margem da história...

Anônimo disse...

À margem do Lago do Uauaçu!

À margem da história sempre esteve o pobre daquele povo, que mesmo assim ainda bate a sua bola.