quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Futebol, contracultura e urbanismo ao som de rock’n’roll

Se eu fosse alemão, meu time não seria o vermelho da Baviera.
Eu não torceria pelo alvirrubro de Stuttgart.
Eu detestaria o aurinegro da Renânia e odiaria os alvicelestes de Berlim e de Hamburgo.
Se eu fosse alemão, seria são paulino. Ou melhor, St. Paulianer.

A história do FC St. Pauli, time do bairro portuário e distrito da luz vermelha de Hamburgo onde já moraram os Beatles, é um dos fenômenos sociais recentes mais interessantes do futebol mundial. Impossível não simpatizar.

Esse time é recebido ao campo ao som de AC/DC estendendo bandeirão do Bob Marley e do Che Guevara – coisa rara na Europa –, tem como símbolo informal uma caveira pirata, comemora gol com bate-cabeça ao som de Song 2 do Blur, grita “Amburgo! Amburgo! Vaffanculo!” em bom italiano pra torcida neonazista do arquirival, tem presidente gay – e ninguém tem nada com isso – e só louco na torcida. Mas não loucos de fé cega ao estilo “aqui tem um bando de louco”, violento e sem projeto. Loucos tipo maluco beleza mesmo, gente muito da fina.

Mas não é por causa dessas curiosidades que o St. Pauli e sua torcida se tornaram um ícone da contracultura alemã. É porque conquistaram bravamente seu lugar na história do bairro, da cidade e do país.

A história é interessante. Na década de 80 – para nós brasileiros a década perdida, para o mundo desenvolvido uma década de prosperidade –, o bairro de St. Pauli passou a receber todo tipo de figura em busca de uma vida mais em conta num canto empobrecido de um país rico e caro. Comunistas, anarquistas, esquerdistas, hippies, batedores de cabeça punk e toda sorte de doidões, os novos moradores do distrito, passaram a defender as cores do time local, embora sem grande fervor. Foi quando a direção do clube propôs uma espécie de gentrificação do bairro – aquele tipo de intervenção urbanística que consiste em expulsar os pobres e investir nas redondezas. Foram propostos um novo estádio e uma cidade esportiva, entre outros projetos que prescindiriam maior intervenção do aparato coercitivo do Estado, encareceriam o custo de vida local e forçariam os ali instalados para um novo e ainda pior lugar. Pois mexeram com a claque errada. O movimento contra o projeto foi tão grande que o St. Pauli virou fenômeno kult.

O que seguiu a vitória urbanística e política das torcidas do St. Pauli foi a simpatia do país e da Europa. O pequeno estádio Millentorn, que até hoje conta com placares manuais para orgulho dos Ultras e dos numerosos donos de passes para a temporada do clube, passou a encher todo jogo e a receber organizadas de todo o país. Acordos foram firmados com outras torcidas politizadas da Europa, com destaque para a do Celtic FC, da Escócia, e do Athletic Bilbao, do País Basco e da Espanha. Na maior organização.

E não foi só. Na Alemanha, organizações neonazistas existem até hoje e contam com uma representatividade até que grande. Esses cidadãos com problema de déficit de tolerância, como seria de se esperar, estenderam suas fileiras para as arquibancadas. O Borussia Dortmund é empurrado pela Borussenfront, cujo passatempo predileto deve ser blasfemar contra o ex-corinthiano Ewerthon. A Herthafrösche, do Hertha Berlin, deve estar agora bolando novos jeitos de repudiar o gaúcho Mineiro. E por aí vai: tolerar os intolerantes é uma encheção que faz parte da vida por lá. Mas não no FC St. Pauli. Ali, as organizadas assumiram um caráter abertamente antifascista e não permitem sua entrada no estádio ou sua influência direta ou indireta. O episódio decisivo foi uma tentativa de quebra-quebra por parte dos nazistas após uma vitória da seleção. Não deu outra: quebrados foram eles.

Após ter sido notado por sua postura politizada e por sua torcida totalmente fora dos padrões nacionais, hoje o St. Pauli conta mais de 11 milhões de torcedores só na Alemanha, disparada a maior da segundona e uma das maiores do país. Além disso tem a maior torcida feminina, participa de protestos maiores contra o racismo, o sexismo, o nazismo e a homofobia, tendo inclusive petrificado estas posições no estatuto do clube, não exibe propagandas de revistas degradantes da mulher no estádio e realiza amistosos contra times simpáticos, como os Soca Warriors de Trinidad e Tobago. Suas organizadas gritam em várias línguas diferentes, do alemão ao italiano, francês e inglês, denotando sua veia internacionalista. E talvez ainda mais interessantemente, o clube adquiriu fama mundial ao organizar em seu estádio o primeiro mundial para países não reconhecidos, contando com seleções do Tibete, da República Turca do Norte do Chipre, da Groenlândia, de Zanzibar, de Gibratar e com o próprio clube representando a “República de St. Pauli” – torneio vencido pelo Chipre do Norte nos pênaltis sobre Zanzibar, conjunto de ilhas na costa da Tanzânia.

O St. Pauli é uma inspiração para times do mundo todo de que é possível desimbecilizar o futebol. Por isso, meu caro, corinthiano aqui, são paulino lá.

* agradecimentos ao caro Daniel Schultz, cientista genial e figuraça-mor que deu a deixa dessa história.

12 comentários:

Anônimo disse...

Fantástico, primoroso!

St. Pauli é um oásis de tolerância em meio ao deserto nazista!

Beat The Nazis!

Beat The Nazia!

Anônimo disse...

Muito bom Josué! Levando em conta o nivel da crônica esportiva atual, vc vai longe....

Anônimo disse...

Amigos,

convido-os a ler minha coluna de quinta-feira no Blog do Tolengo: http://blogdotolengo.zip.net

Ela gira sempre em torno de temas que unem o futebol à política e à cidade.

Abraços!

Tiago Marconi disse...

Muito bom, Zé Pedro! Agora o trio de zaga está bem composto (apesar da estatura!).

Não conhecia essa história. Agora já tenho um time na Alemanha...

Anônimo disse...

Iiiii toda a corinthianada St. Paulinos é? que maravilha...
Torpas, muito bom valeu mano!!!

Anônimo disse...

Kim, nos faça um favor, para de comentar no nosso blog.

A disse...

Ao meu ver, a única semelhança entre o St Pauli de lá e o São Paulo de cá é a presença de bambis na torcida. De resto, não sobra muita coisa.
Excelente matéria.
Abraço

Tiago Marconi disse...

E aí, companheiros de zaga? Qual é a tática contra o Kim? Linha de impedimento, revezamento de faltas ou racha logo?

Pára de folgar, hein, rapá? Aqui no blog, do pescoço pescoço pra baixo, é tudo canela!

Anônimo disse...

Boa Zé, concordo com o China!

Só acho estranho elencar o Kfouri como confiável...

Anônimo disse...

Chicão,

o texto está muito bom. Só preciso discordar do "violento e sem projeto".

As organizadas daqui estão milênios-luz de distância de uma politização a la St. Pauli. Mas não são necessariamente e todo o tempo ou em todo o seu conjunto nem violentas, nem sem processo.

Aqui em São Paulo, onde os clubes de bairro foram o primeiro local de formação social e política da cidade, antes mesmo dos partidos, as TO's funcionaram como uma sequência disso. Se tem algum segmento no futebol brasileiro que destoa da mercantilização e elitização do mesmo, este segmento é o das TO's. Da Gaviões nem preciso falar, mas todas tem sim um tanto de participação política na vida de seus clubes, por mais que nesse 'política' não este subentendido o anti-autoritário e a postura abertamente de esquerda dos St. Paulianers.

E escreve aí: um dia ainda jogo pelo St. Pauli.

Abraços!

Anônimo disse...

Onde está escrito processo, leia projeto.

E onde está escrito este, leia esteja.

Zé Pedro Fittipaldi disse...

Fala Danilo,
É verdade, há nesse ponto um certo reducionismo. Mas convenhamos que a participação política se circunscreve quase absloutamente à vida dos clubes, que são organizações privadas, o que é bem imbecil do ponto de vista cívico. Ninguém gosta de falar nisso, mas compará-las com um movimento social de verdade é relevar que levam o circo a sério demais.