segunda-feira, 17 de março de 2008

Lembranças Incólumes de um Carnaval Imperfeito

Por Chico Garcia

Os motivos de uma tragédia são sempre bestas: não cabem numa nota de jornal, chateiam em uma crônica e poucos valem um romance.

Muito mais importantes são os fidedignos relatos da memória do povo, de todos os sambistas anônimos, andarilhos fugazes e testemunhas sóbrias que ali estavam, pois ninguém jamais vai esquecer aquele São Jorge.

O carro era uma alegoria primorosa, acabado à mão por noites inteiras. Estava pronto para entrar no desfile e ser o lúdico que deveria ter sido, não fosse tamanha a selvageria desse sábado de fevereiro.

Não houve espanto e não faltaram alertas. O conto estava escrito há tempos, com páginas e páginas permeadas pela falta de bom senso, diligência e incapacidade de prever o óbvio. O repórter apurou, o jornal publicou e o leitor já sabia muito antes disso que as torcidas organizadas se armavam até os dentes, para o que deveria ser um simples desfile de blocos carnavalescos.

A invasão dos grupos de arquibancada no sambódromo começou como um ideal de existência e terminou como estratégia de sobrevivência, povoando de agremiações fanáticas de todos os times (algumas delas repletas de bandidos armados, que acabam vindo para a avenida no meio de muita gente boa) o grupo de acesso do carnaval paulista.

E no dia 22 de Fevereiro de 2003, em pleno Anhembi, tudo o que todos previam virou realidade. A.J.J, o Sukita, presidente de uma das maiores torcidas organizados da cidade, foi preso por espancar até a morte um torcedor de uma agremiação rival; e, não obstante, também como suspeito de assassinar a tiros o carnavalesco Ruy Luciano Nogueira, de vinte e cinco anos, apenas porque o artista plástico se recusou a ver um de seus carros alegóricos destruído. Um particularmente belo, que trazia a imagem de São Jorge, o guerreiro.

Ruy foi enterrado sob revolta. As lágrimas da injustiça ainda permanecem frescas em sua lápide e ninguém jamais foi preso ou sequer julgado pelo crime hediondo que deu cabo à sua vida. Sukita responde pelo primeiro homicídio citado - uma pena de quatorze anos, com liberdade condicional em sete – por falta de provas concretas de que, conforme contam por aí, empunhou a arma usando a camisa de seu time de coração e disparou três balas contra a cabeça do carnavalesco, tão e somente porque ele trabalhava para uma torcida rival.

Há de se discutir a existência das organizadas na avenida e há de se respeitar sua tradição, dentro e fora das arquibancadas. Quem sabe não seja possível, através da igualdade do samba, criar raízes de tolerância sem que seja necessário policiar o carnaval tão ostensivamente quanto o futebol. Enquanto não se chega lá, contudo, deve-se marcar de perto a existência desses grupos nos desfiles; e torcer, torcer muito, para que outra tragédia como essa não venha a acontecer.

A espada brilhante do herói desferia o golpe final no dragão mitológico e era para ser vista por todos. Mas amanheceu escondida por um plástico negro, ao lado do corpo desfalecido de seu criador. Quando por uma simples disputa de arquibancada um carnavalesco teve de morrer protegendo sua obra, o sambódromo paulista assistiu de uma vez por todas a vitória da violência sobre a ternura; e de um bando de imbecis sobre todas as outras pessoas.

Prisioneiro de sua arte, o próprio artista foi réu no tribunal indecifrável dos destinos mundanos, culpado pela transfiguração do mundo e devoção cega ao trabalho que tanto amava. Seu veredicto, todo torto desde o início, foi que deveria deixar o mundo assim: abraçado com um filho esculpido em isopor, colorido com tinta e imortalizado na história coberto de sangue.
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agradecimentos ao parceiro de boteco Lello di Sarno, que esses dias puxou o assunto, já enterrado pelo tempo, antes de pedir outra cerveja.

Um comentário:

Anônimo disse...

Belo texto.

sou o primeiro contra essa história de torcidas escolas de samba. no Rio nao tem isso pq aqui precisa ter?