sábado, 1 de maio de 2010

A Copa da África

Por Marílio Wane, sociólogo e príncipe moçambicano, vizinho da África do Sul, correspondente do Retranca Crônica direto de Salvador

Copa do Mundo taí e dessa vez vai ser num país africano, pela primeira vez na História. Por esse simples fato já podemos esperar por uma competição diferente em todos os sentidos.

O grande lance é que além de um país africano se tornar o centro das atenções do mundo inteiro por um mês, a Copa traz uma oportunidade única de “a África se mostrar para o mundo”, digamos assim. A novidade nisso é que normalmente as imagens veiculadas sobre “África” - um verdadeiro monstro geográfico, populacional e cultural - na grande mídia global são produzidas a partir de fora, quase sempre sob um olhar ocidental. Aquela velha história.

O resultado disso é que, no senso comum, as pessoas passam a associar a “África” a esse pacote de guerra-fome-doenças-selvageria produzido diariamente pelo antropólogo William Bonner. Sem falar nos milhões de programas sobre hábitos dos leopardos “no coração da África”. Odeio cada um deles! Nada contra os belíssimos felinos, o negócio é que a repetição constante dessas imagens reforça a distorção sobre a realidade atual do continente.

Bom, era importante colocar isso antes de falar sobre o que significa uma Copa na África, sobre que outros fatores envolve. O país sede - África do Sul - é o mais rico do continente, altamente industrializado e na verdade, o único que atualmente pode sediar um evento desse porte. Quem não conhece vai se surpreender com as imagens de modernidade que o país vai fazer questão de mostrar ao mundo. Os estádios, por exemplo, dão de 10 a 0 em qualquer um daqui do Brasa agora...

Resumindo, trata-se de uma oportunidade única para se ampliar o conhecimento do que se entende por “África”, já que o futebol é diversão garantida em todo o planeta. Todo mundo vai ver. É claro que vai haver uma grande filtragem do que vai se mostrar - e do que não vai se mostrar! - mas em tempos de twitter... E também é verdade que a África do Sul é um país atípico no continente, mas como vai funcionar como uma vitrine, pode ajudar a mudar a idéia que muita gente faz desta parte da Terra.

Existe sim muita pobreza e violência, mas sempre retratadas pelas lentes da CNN, BBC e amigos da Rede Globo. O que a Copa traz este ano é a possibilidade de ampliação do que essas lentes mostram, em direção a uma realidade africana mais complexa e por isso mais interessante. O principal mecanismo de distorção dessas lentes é apresentar a “África” como uma entidade única, nivelando a enorme diversidade que existe no continente, em todas as esferas.

E aí, o único jeito de remar contra a maré é tomar como referência o ponto de vista dos próprios africanos e nesse sentido, a oportunidade é a melhor possível. É justamente aí que entra o futebol: toda essa complexidade interna africana vai aparecer assim que a bola começar a rolar. As diferentes reações dos torcedores africanos serão amplificadas pela visibilidade mundial do evento, destacando rivalidades e alianças internas cultivadas pelas mais diversas razões ao longo da História.

Muito em função da luta contra o colonialismo, de cara já rola uma solidariedade entre os países africanos e dá pra dizer que a princípio, a maioria dos africanos torce pras seleções do continente. Porém, há nuances aí. Por exemplo, a Nigéria é um país cuja imagem sofre rejeição crescente dentro do contexto africano, sobretudo por causa do narcotráfico e outras atividades criminosas que se alastram para outros países. Vai ter torcida contra em alguns lugares, mas no geral, apoio.
A Argélia se encontra em um contexto particular, a chamada “África branca”, composto pelos países do norte, mais ligados ao universo árabe-islâmico. Na hora do gol, a coreografia é em direção à Meca as suas vitórias serão comemoradas do Marrocos ao Oriente Médio. Aqui temos uma confluência de fatores geográficos, religiosos e raciais, todos operando ao mesmo tempo pra acirrar as rivalidades. E mesmo dentro desse universo, tem briga. Todos se lembram dos confrontos entre Egito e Argélia na última Copa das Nações Africanas, que deu até em rompimento diplomático. O Deserto do Saara vai virar mar perto do que os “faraós” vão secar!

Já o meu país - Moçambique - não vai participar da Copa, mas a reação dos compatriotas também indica outras complexidades internas. Os moçambicanos acompanham o futebol português e torcem apaixonadamente para os seus times, Benfica, Porto e Sporting. É um caso clássico de herança cultural colonial, que deve ocorrer em outros países, inclusive. A princípio, este fenômeno gera uma simpatia pela seleção portuguesa também, mas não necessariamente... Algo me diz que a solidariedade pan-africana vai prevalecer, por exemplo, no jogo contra a Costa do Marfim, logo na primeira fase. Foi assim em 2006, contra Angola. O jogo Brasil x Portugal vai ser particularmente interessante por lá, até pra registrar a crescente influência brasileira atualmente. Tem gente que até fala em “nova colonização”. Mas aí já é outra cachaça!

Dentro de casa, para os sul-africanos, brancos e pretos, é só festa! Tome vuvuzela! Reconhecem que seu time é limitado e vão torcer até onde der e também pelos outros africanos. A Copa das Confederações 2009 já foi uma prévia disso, onde a torcida mais faz celebrar a realização da Copa no país. Mas Inglaterra e Holanda (os antigos colonizadores europeus) terão as suas torcidas locais, visivelmente representadas... Alguns com saudades do apartheid.

Enfim, todas essas disputas regionais vão mostrar ao mundo um continente multi-facetado, nada a ver com as generalizações que normalmente se faz. Longe de ser um lugar isolado e remoto da Terra, a África está conectada à Humanidade desde a sua própria origem. Né mole, não. E se a maioria de seus povos hoje convive com a pobreza e a violência, isto está diretamente ligado à forma como essa conexão se dá nesse mundo globalizado... Neo-liberalizado e neo-colonializado pra maioria.

Enfim, a partir de junho, a Humanidade (afinal de contas, mesmo quem não gosta de futebol assiste a Copa, né?) vai ter uma rara oportunidade de voltar as atenções para o seu próprio berço. Momento interessante até para refletir sobre a sua situação em que se encontra atualmente e até mais além: o que nos liga como humanos? Desconfio que seja algo parecido com uma bola...

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