quarta-feira, 16 de abril de 2008

De como as prostitutas coríntias inspiraram a rivalidade paulistana

Naqueles velhos tempos, naquele lugar estreito, o que movia a vontade dos homens era o cheiro doce de damas como Laís, a mais famosa dentre as muitas mulheres da difícil vida fácil da Antigüidade; vinha-se de muito longe comerciar e, por quê não, gozar os prazeres de zona portuária do istmo. E a cidade-estado de Corinto, onde non licet omnibus adire (onde nem todos podem ir, por ser cara), estava sempre cheia de entusiastas da primeira profissão, vivendo en passant embora intensamente ao lado - em sentido muitas vezes literal - de hedonistas de cores múltiplas e de tipos para quem a libertinagem imperava sobre os sistemas rígidos de valores.

O antigo-vendedor-de-barracas-agora-evangelista Paulo percebeu que não havia lugar na Terra mais carente de uma boa evangelizada. Aquilo era demais! Como assim, ignorar Deus e viver desse jeito?! Se um único porto na existência carecia da Palavra, esse porto era Corinto, que contribuía tanto para os quadros do inferno que o Coisa-Ruim, naqueles tempos de experimentação em que Deus ficava cada vez mais famoso (estamos falando da década de 50 d.C.), já pensava em cobrar uma tarifa por excesso de contingente - idéia que seria abandonada quando o excesso de contingente entrando no inferno começou a se mostrar uma constante histórica.

Pois Corinto era de uma tal liberalidade moral que Paulo, cuja capacidade de evangelização acabaria lhe garantindo o certificado oficial de santo entregue em mãos pelo todo-poderoso em pessoa, esse Paulo de Tarso que tinha o poder do milagre em suas mãos, fôra deliberadamente ignorado pela maior parte da população. Tentara algumas conversões e acabara voltando para Éfeso de mãos abanando, deixando em Corinto uma igreja descreditada com fiéis deseperados por orientação em um mundo bem terrenamente paradisíaco.

Mas Paulo, o apóstolo dos gentios, um Paulo muito do trabalhador, nunca desistia diante de uma obra inacabada. Frustrado pela fraqueza da Igreja na paróquia, sentou-se para escrever uma carta conclamando fidelidade e força. A "Carta de São Paulo aos Coríntios", posteriormente seguida por outra epístola, acabaria anexada à Bíblia.

Basicamente, ela diz: "Cristão de Corinto! Ao vosso redor, impera a mais ampla balada, mas não arrefecei diante disso que Deus vai premiar vosso bom comportamento. Agüentai a tentação e ficai na vossa que esses baladeiros e esportistas mercenários não perdem por esperar - vão queimar nas chamas do Tinhoso".

Há em especial uma passagem que faz referência direta aos Jogos Ístmicos, disputados todo ano em Corinto. Escreve São Paulo:

"Não sabeis vós que os que correm no estádio, todos, na verdade, correm, mas um só leva o prêmio? Correi de tal maneira que o alcanceis.
E todo aquele que luta de tudo se abstém; eles o fazem para alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, uma incorruptível.
Pois eu assim corro, não como a coisa incerta; assim combato, não como batendo no ar.
Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado."
(Coríntios I, 9:24-27)

Com essa penada, São Paulo fundou o esporte amador e o atleta de Cristo. Voemos então uns 18 séculos para a frente na história.

Na Inglaterra vitoriana (século XIX), auge do British Empire, floresce na educação um movimento auto-denominado "cristandade muscular" (muscular christianity) que preconizava que o bom cristão, o bem educado construtor do Império, devia praticar esportes, mas sempre "buscando a coroa incorruptível" ao invés da "corruptível". O esporte, nesses berços do balípodo que foram escolas públicas católicas como Eton, Oxford e Cambridge, era visto como um meio para o desenvolvimento físico e moral do cidadão, nunca como uma disputa por dinheiro ou pela vitória por si. Isso foi denominado o "ideal coríntio do amadorismo" (the Corinthian ideal of amateurism), e foi em torno dele que se organizaram as primeiras ligas esportivas de cavalheiros na Inglaterra.

Ideal coríntio, vejam bem, por causa da carta e jamais por causa dos próprios coríntios, que não perdiam uma boa balada por nada e entravam no estádio pra ganhar. O coríntio médio era devasso à beça, tanto que São Paulo apareceu como uma espécie de moralizador-geral da parada.
O time de futebol mais amador do mundo, aquele que se orgulhava do fair play e de seu
ideal a ponto de avisar ao árbitro quando marcava ilegalmente, era o Corinthians Amateur Gentleman's Football Club - o time coríntio, fidelíssimo à epístola de Paulo.

Bonzinhos que eram os cavalheiros do Corinthians - e bons de bola, também, fique claro - quando operários e estrangeiros começaram a poder jogar por dinheiro o scratch começou a levar biaba atrás de biaba.

De um lado, nobres gentlemen que não viam nada de estranho em abordar o árbitro com um justíssimo "excuse me, Sir, but I respectfully disagree with your call - I beg you to disallow the goal I just scored" ("com licença, senhor, eu respeitosamente discordo de sua marcação - imploro para que anule o gol que acabei de fazer"), como fez o centro-avante Archie Carruthers em um jogo decisivo da FA Cup contra o Barcherster United.

Do outro, operários e estrangeiros sedentos pelos privilégios dados aos plebeus vitoriosos, motivados por salários, por "bichos" e pela possibilidade de folgas no trabalho.

Era evidente que o Corinthians altruísta ia cair em desuso.

Ao perder proeminência na Inglaterra, o que não tardou com o alvorecer do profissionalismo no futebol inglês, o time saiu em diversos tours pelo mundo para difundir o futebol e o ideal do amadorismo - como se fazia no rugby até pouco tempo atrás. Foram à África do Sul, Hungria, Escandinávia, Estados Unidos, Canadá e Brasil. Alguns de seus legados: a camisa branca do Real Madrid, a popularização do futebol na África do Sul e, é claro, o Corinthians Paulista, cujos fundadores admiraram o futebol redondo daqueles boyzinhos gentis e decidiram homenagear o alvi-negro da terra da Rainha em seu próprio clube em fundação.

A ironia da história: São Paulo escreve aos Coríntios, inspirando o Corinthians Football Club, que inspira o Corinthians Paulista, da cidade de São Paulo, que tem um clube cujo nome fôra inspirado pela homenagem a São Paulo feita em 1554, que é rival do Corinthians.

Biblicamente falando, São Paulo nunca foi muito com a cara dos corinthians, e os corinthians nunca se deram muito com São Paulo.

Futebolisticamente, menos ainda.

* * *

Alguns comentários que talvez só interessem a mim:

O Corinthians pode ser enquadrado, assim sendo, na categoria "times com nomes gregos", com vários pares mundo afora. Como escreveu o ótimo David Keyes, de San Diego, California, no ótimo Culture of Soccer (Some Team Names Are All Greek to Me), a lista engloba também Atalanta (Itália) e Sparta Rotterdam, Heracles Almelo e Ajax Amsterdam (Holanda)... Podemos acrescentar de nossa parte também o Atlas (México), o Hércules Alicante (Espanha), o Achilleas (Chipre), entre tantos outros de que não me recordo...

Outro detalhe curioso é o caminho das palavras pelo tempo e pelo espaço. O nome grego do Curíntia fez o mesmo que palavras como "mídia" e "bactéria" - veio do grego via inglês, tendendo sempre à corruptela na última flor do Lácio. "Mídia" é o plural anglicizado do grego "medium", usado no plural para falar o singular, tal qual "bactéria", que também é um plural grego que virou singular na nossa língua. Nessa passagem do grego para o inglês para o português, perdeu-se o mecanismo de flexão de número da gramática do grego, que os anlgófonos fizeram questão de preservar (medium, media; bacterium, bacteria, stadium, stadia). Daí que sempre que alguém fala em "mídias", alguma coisa estranha acontece dentro do meu estômago, mesmo que o Houaiss aceite a palavra. Em Portugal, usa-se "média". Os média, como bem convém, ó, pá!

Mais curioso ainda é o papel de cada time no futebol brasileiro atual. O São Paulo adota postura e discurso moralistas e moralizadores, de um modo que, embora nada amador, guarda algo do tom de São Paulo em sua carta aos coríntios - especialemente quando uma figura como Marco Aurélio Cunha abre a boca para falar do arqui-rival. Note-se a diferença gritante de que, ao fazer gol de mão, o São Paulo faz o velho Carruthers (assim como o próprio São Paulo, o de Tarso) se remexer no túmulo - não vi ninguém pedindo a anulação contra o pobre time verde, como o corinthiano Carruthers com certeza faria.

Já o Corinthians, eterna baderna, é o garoto devasso da história, colocando no orçamento até lingerie de secretária. Entretanto, seu modelo administrativo é um dos mais "são paulinos" dos clubes grandes do Brasil - ao menos naquilo que se refere ao amadorismo. Se o Corinthians não fosse amador em alguma coisa, não faria jus ao nome.

2 comentários:

Anônimo disse...

Opa! Um pouco sensacionalista, no que diz respeito à Grécia Antiga, mas bem saboroso... Parabéns

Anônimo disse...

da hora