domingo, 3 de janeiro de 2010

Union Berlin

uma participação ipsis literis do ilustre Daniel Schultz, correspondente global do Retranca Crônica (blog muito do retrancado mas que não tá morto, não).

Cara, descobri outra pérola do mundo da bola!

Foi numa conversa em Berlin com um torcedor do Stuttgart, o Basti, que entendia bem do assunto. Muito esclarecedora sobre o futebol alemão, por sinal. Passei a ter muito mais respeito. Sempre achei estranho o fato de a Alemanha ser o país mais rico da Europa, sete finais de copa, grande popularidade do futebol e ainda assim ter seus clubes se dando tão mal no cenário internacional. E mais estranho ainda o fato de só haver uma potência clubística, já que a natureza do jogo exige a polarização da população. Acabei descobrindo um perfil de torcedor que mantém a pureza do ideal bem acima de resultados (creio que reflexo do pós-guerra), e a polaridade acaba ficando Bayern vs anti-Bayern. Há uma enorme rejeição ao clube rico e comercial. Há uma enorme rejeição ao Hoffenheim sem história e com injeção de dinheiro pessoal. E por que a liga alemã não tem o peso da espanhola? Porque há uma regulamentação muito mais rígida com as finanças dos clubes. Nada de Berezovskys, Berlusconis, Abramoviches ou petrodólares. Nada de clube endividado. Nada de "donos" de clube. Passei uma certa vergonha quando estava rasgando elogios ao Tévez e ouvi: "mas foi comprado com dinheiro sujo, não foi?" Respondi que pagamos nossos pecados na segunda divisão. Falei que os responsáveis estavam a caminho da cadeia (uma mentirinha ocasional não faz mal a ninguém). Aprendi que a Alemanha tem a maior média de público da Europa, que o ingresso ainda é barato e que o dinheiro dos contratos de TV são mais distribuidos, inclusive a divisões inferiores. Num cenário como esse florescem os St. Pauli da vida. E por que os jogadores permanecem no país? "É uma questão de qualidade", disse Basti. "Atualmente só o Ballack é diferenciado. A força da seleção está apenas no conjunto".

E por que Berlin, a capital e maior cidade, não tem uma equipe de ponta? Berlin foi uma cidade complicada politicamente no pós-guerra. O futebol do leste como um todo enfraqueceu frente ao oeste e a parte ocidental da cidade tinha grandes dificuldades logísticas. O "clube grande" da cidade, o Hertha, hoje ocupa a última posição da tabela e não goza de muita popularidade. O perfil elitista de direita de seus torcedores contrasta com a cultura underground da cidade. "Mas se você estiver interessado, na segunda-feira vai ter estádio lotado para o jogo do 1. FC Union Berlin contra o Kaiserslautern, o líder da segunda divisão". Claro que interessa. E lá vamos nós para Köpenick. O Eisern Union (união de aço) surgiu em 1906 como clube da classe trabalhadora, se opondo aos times elitistas, e teve seus sucessos antes da guerra. Quando já em 1950 foram proibidos pelo governo comunista de viajar ao ocidente para participar da copa da Alemanha, parte do clube pulou a cerca e fundou uma filial ocidental de mesmo nome. O clube então jogava nos dois lados da cidade, nos dois campeonatos. No leste o Union era o grande rival do Dinamo Berlin, o time da Stasi, e virou símbolo de oposição ao regime autoritário. Na Berlin unificada acabou reunindo uma apaixonada torcida idealista. Fiel às origens proletárias, anti-fascista, anti-repressão, não- conformista. O estádio de Alte Försterei, para umas 20.000 pessoas, foi reconstruído voluntariamente pelos torcedores em tempos de séria crise financeira depois da queda do muro. Chegando lá, a torcida toda em vermelho e branco cantava o hino do time, composto por ninguém menos que Nina Hagen, torcedora símbolo do clube. O clima dentro do estádio era contagiante. A torcida mostrava muito mais empolgação que a do jogo do Madrid no Bernabéu, a outra partida que eu vi na Europa. Cantava em pé, apoiando o time a partida inteira. Obviamente que como sul-americano convicto não vou me curvar à intensidade de nenhuma torcida européia, mas algo diferente realmente me chamou a atenção. A torcida estava ali por uma afinidade política e cultural, embora não faltasse interesse na partida em si. Empurrava o time incondicionalmente, independente do resultado. O time medíocre se esforçava agradecido. Tremenda manifestação de união ideológica! No final a derrota por 2x0 para o adversário muito superior pouco importou. Durante os minutos finais da partida, durante a volta da equipe junto às arquibancadas agradecendo o apoio e durante a saída do estádio até o metrô, a torcida não parava de cantar o moto do clube ao ritmo de palmas: "FC Union, unsere Liebe, unsere Mannschaft, unser Stolz, unser Verein, Union Berlin, Union Berlin!".

Pelo que eu entendi é um fenômeno semelhante ao do St. Pauli, mas um pouco menos "baladinha", menos difundido e num clima mais sério. Em tempos de time entregando jogo, torcida agredindo jogador em porta de banco, conselheiro levando arma pro vestiário, todos comportamentos que, embora eu discorde, fazem parte do mundo futebolístico em que eu fui criado, me surpreendeu essa filosofia alemã de ir ao estádio só pra ver o seu time jogar. De ir ao seu estádio de primeiro mundo e dizer com orgulho: esta aí um time que representa bem a minha comunidade. Bem administrado, com dinheiro limpo, com preocupação social. O que vier além disso é lucro. E não se importam com a Champions League.