O antigo-vendedor-de-barracas-agora-evangelista Paulo percebeu que não havia lugar na Terra mais carente de uma boa evangelizada. Aquilo era demais! Como assim, ignorar Deus e viver desse jeito?! Se um único porto na existência carecia da Palavra, esse porto era Corinto, que contribuía tanto para os quadros do inferno que o Coisa-Ruim, naqueles tempos de experimentação em que Deus ficava cada vez mais famoso (estamos falando da década de 50 d.C.), já pensava em cobrar uma tarifa por excesso de contingente - idéia que seria abandonada quando o excesso de contingente entrando no inferno começou a se mostrar uma constante histórica.
Pois Corinto era de uma tal liberalidade moral que Paulo, cuja capacidade de evangelização acabaria lhe garantindo o certificado oficial de santo entregue em mãos pelo todo-poderoso em pessoa, esse Paulo de Tarso que tinha o poder do milagre em suas mãos, fôra deliberadamente ignorado pela maior parte da população. Tentara algumas conversões e acabara voltando para Éfeso de mãos abanando, deixando em Corinto uma igreja descreditada com fiéis deseperados por orientação em um mundo bem terrenamente paradisíaco.
Mas Paulo, o apóstolo dos gentios, um Paulo muito do trabalhador, nunca desistia diante de uma obra inacabada. Frustrado pela fraqueza da Igreja na paróquia, sentou-se para escrever uma carta conclamando fidelidade e força. A "Carta de São Paulo aos Coríntios", posteriormente seguida por outra epístola, acabaria anexada à Bíblia.
Basicamente, ela diz: "Cristão de Corinto! Ao vosso redor, impera a mais ampla balada, mas não arrefecei diante disso que Deus vai premiar vosso bom comportamento. Agüentai a tentação e ficai na vossa que esses baladeiros e esportistas mercenários não perdem por esperar - vão queimar nas chamas do Tinhoso".
Há em especial uma passagem que faz referência direta aos Jogos Ístmicos, disputados todo ano em Corinto. Escreve São Paulo:
"Não sabeis vós que os que correm no estádio, todos, na verdade, correm, mas um só leva o prêmio? Correi de tal maneira que o alcanceis.
E todo aquele que luta de tudo se abstém; eles o fazem para alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, uma incorruptível.
Pois eu assim corro, não como a coisa incerta; assim combato, não como batendo no ar.
Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado."
(Coríntios I, 9:24-27)
Com essa penada, São Paulo fundou o esporte amador e o atleta de Cristo. Voemos então uns 18 séculos para a frente na história.
Na Inglaterra vitoriana (século XIX), auge do British Empire, floresce na educação um movimento auto-denominado "cristandade muscular" (muscular christianity) que preconizava que o bom cristão, o bem educado construtor do Império, devia praticar esportes, mas sempre "buscando a coroa incorruptível" ao invés da "corruptível". O esporte, nesses berços do balípodo que foram escolas públicas católicas como Eton, Oxford e Cambridge, era visto como um meio para o desenvolvimento físico e moral do cidadão, nunca como uma disputa por dinheiro ou pela vitória por si. Isso foi denominado o "ideal coríntio do amadorismo" (the Corinthian ideal of amateurism), e foi em torno dele que se organizaram as primeiras ligas esportivas de cavalheiros na Inglaterra.
Ideal coríntio, vejam bem, por causa da carta e jamais por causa dos próprios coríntios, que não perdiam uma boa balada por nada e entravam no estádio pra ganhar. O coríntio médio era devasso à beça, tanto que São Paulo apareceu como uma espécie de moralizador-geral da parada.
O time de futebol mais amador do mundo, aquele que se orgulhava do fair play e de seu
ideal a ponto de avisar ao árbitro quando marcava ilegalmente, era o Corinthians Amateur Gentleman's Football Club - o time coríntio, fidelíssimo à epístola de Paulo.
Bonzinhos que eram os cavalheiros do Corinthians - e bons de bola, também, fique claro - quando operários e estrangeiros começaram a poder jogar por dinheiro o scratch começou a levar biaba atrás de biaba.
De um lado, nobres gentlemen que não viam nada de estranho em abordar o árbitro com um justíssimo "excuse me, Sir, but I respectfully disagree with your call - I beg you to disallow the goal I just scored" ("com licença, senhor, eu respeitosamente discordo de sua marcação - imploro para que anule o gol que acabei de fazer"), como fez o centro-avante Archie Carruthers em um jogo decisivo da FA Cup contra o Barcherster United.
Do outro, operários e estrangeiros sedentos pelos privilégios dados aos plebeus vitoriosos, motivados por salários, por "bichos" e pela possibilidade de folgas no trabalho.
Era evidente que o Corinthians altruísta ia cair em desuso.
Ao perder proeminência na Inglaterra, o que não tardou com o alvorecer do profissionalismo no futebol inglês, o time saiu em diversos tours pelo mundo para difundir o futebol e o ideal do amadorismo - como se fazia no rugby até pouco tempo atrás. Foram à África do Sul, Hungria, Escandinávia, Estados Unidos, Canadá e Brasil. Alguns de seus legados: a camisa branca do Real Madrid, a popularização do futebol na África do Sul e, é claro, o Corinthians Paulista, cujos fundadores admiraram o futebol redondo daqueles boyzinhos gentis e decidiram homenagear o alvi-negro da terra da Rainha em seu próprio clube em fundação.
A ironia da história: São Paulo escreve aos Coríntios, inspirando o Corinthians Football Club, que inspira o Corinthians Paulista, da cidade de São Paulo, que tem um clube cujo nome fôra inspirado pela homenagem a São Paulo feita em 1554, que é rival do Corinthians.
Biblicamente falando, São Paulo nunca foi muito com a cara dos corinthians, e os corinthians nunca se deram muito com São Paulo.
Futebolisticamente, menos ainda.
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Alguns comentários que talvez só interessem a mim:
O Corinthians pode ser enquadrado, assim sendo, na categoria "times com nomes gregos", com vários pares mundo afora. Como escreveu o ótimo David Keyes, de San Diego, California, no ótimo Culture of Soccer (Some Team Names Are All Greek to Me), a lista engloba também Atalanta (Itália) e Sparta Rotterdam, Heracles Almelo e Ajax Amsterdam (Holanda)... Podemos acrescentar de nossa parte também o Atlas (México), o Hércules Alicante (Espanha), o Achilleas (Chipre), entre tantos outros de que não me recordo...
Outro detalhe curioso é o caminho das palavras pelo tempo e pelo espaço. O nome grego do Curíntia fez o mesmo que palavras como "mídia" e "bactéria" - veio do grego via inglês, tendendo sempre à corruptela na última flor do Lácio. "Mídia" é o plural anglicizado do grego "medium", usado no plural para falar o singular, tal qual "bactéria", que também é um plural grego que virou singular na nossa língua. Nessa passagem do grego para o inglês para o português, perdeu-se o mecanismo de flexão de número da gramática do grego, que os anlgófonos fizeram questão de preservar (medium, media; bacterium, bacteria, stadium, stadia). Daí que sempre que alguém fala em "mídias", alguma coisa estranha acontece dentro do meu estômago, mesmo que o Houaiss aceite a palavra. Em Portugal, usa-se "média". Os média, como bem convém, ó, pá!
Mais curioso ainda é o papel de cada time no futebol brasileiro atual. O São Paulo adota postura e discurso moralistas e moralizadores, de um modo que, embora nada amador, guarda algo do tom de São Paulo em sua carta aos coríntios - especialemente quando uma figura como Marco Aurélio Cunha abre a boca para falar do arqui-rival. Note-se a diferença gritante de que, ao fazer gol de mão, o São Paulo faz o velho Carruthers (assim como o próprio São Paulo, o de Tarso) se remexer no túmulo - não vi ninguém pedindo a anulação contra o pobre time verde, como o corinthiano Carruthers com certeza faria.
Já o Corinthians, eterna baderna, é o garoto devasso da história, colocando no orçamento até lingerie de secretária. Entretanto, seu modelo administrativo é um dos mais "são paulinos" dos clubes grandes do Brasil - ao menos naquilo que se refere ao amadorismo. Se o Corinthians não fosse amador em alguma coisa, não faria jus ao nome.