quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Bambi, o Viril

(ou Crônica de Uma Tradição a Inventar)

Hoje achei por bem inventar uma tradição. Tradições são mesmo invenções, ora; tradições serão mesmo inventadas, ora; inventemo-las nós mesmos essa vez antes que alguém exija os créditos por nossos papos de bar. E não pense se tratar de brincadeira: o que virá a seguir é uma penada imparcial da asa direita do anjo da história.

Desceu esse ímpeto inventivo porque uma coluna recente do renomado jornalista Fernando Gallo, publicada no blog de Juca Kfouri e intitulada “Bambis, ora pois!”, faz aguerrida defesa – o autor deve ser zagueiro, como nós – da adoção do apelido "bambi" pela torcida do São Paulo Futebol Clube. Escreveu Gallo:

“Está na hora de nós, são-paulinos de fina estirpe, tricolores de quatro costados, assumirmo-nos: somos bambis, sim senhor! Por que não?”

Com a legitimidade que só um são-paulino fanático teria na matéria, Gallo justifica sua opinião com argumentos cativantes: os palmeirenses não adotaram o porco, outrora uma ofensa? O Flamengo não virou urubu? Não é o São Paulo um time moderno, que quer construir “um espaço para o qual convirjam pessoas de toda sorte, independentemente de suas preferências sexuais?”. Aceitemos o bambi, ora, pois, e façamos “um bem danado para a imagem e os cofres do clube”.

De imediato achei interessante ouvir o trote do devir da história passando a cavalo, não por qualquer espírito de torcedor rival mas especialmente pela satisfação que senti em ver uma torcida grande ao mesmo tempo se reconhecendo na outra e vislumbrando nessa possibilidade um elemento de sua própria afirmação. Saudável! Aceitando a alcunha de bambi, o são-paulino seria ainda mais são-paulino: se imporia pela pitada de indiferença que acrescentaria ao tratamento já indiferente conferido aos rivais, mas, ainda mais belo, docemente reproduziria o passado deles, deste modo valorizando-o.

Pois mudei de opinião não muito depois. Mesmo que Gallo tenha mostrado sensibilidade elogiável ao defender uma opinião baseada em valores maiores que o chauvinismo futebolístico, pensei, faltou a ele uma visão mais acurada a respeito da natureza dessa aceitação.

A verdade é que o espírito subjacente à adoção do simpático cervídeo pelo são-paulinato não será a aceitação da diversidade nem o vislumbre de uma astuta oportunidade de negócios, elementos centrais no já notório chamado do jornalista a uma consicência mais elevada. Será antes disso um reflexo da seguinte luz: bambi sinônimo de homossexual é coisa de corinthiano ignorante, coisa de Vampeta de Nazaré, coisa de nego que se apresenta bêbado em recepção oficial, coisa de povão – o veado é um animal viril! O mundo inteiro sabe disso, menos a ralé!


Sabemos graças ao trabalho de historiadores da tarimba de um Eric Hobsbawm (torcedor do Arsenal FC de Londres) que o fenômeno da invenção das tradições é um grande lugar-comum da história. Há dois tipos principais: as tradições políticas, instrumento de legitimação de estruturas políticas face a cenários em rápida transformação – hinos, símbolos, cerimônias, feriados, mitos, mártires, tudo aquilo que possa usar “elementos irracionais” para contribuir para a manutenção da ordem social; e as tradições sociais, que aparecem como veículos de afirmação dos grupos mais diversos na forma de critérios de identificação, distinção e pertencimento – o boné da classe proletária, o próprio significado social do futebol, as tradições acadêmicas, a etiqueta burguesa, símbolos, mitos, mártires, enfim, diferentes elementos de diferentes classes em diferentes tempos e lugares.

Thank you dearly, Hobs. Agora me respondam: não é de se esperar que a elite que ainda ontem inventou a tradição do bandeirantismo para atribuir heroísmo ao incursor bárbaro de territórios hostis, que há pouco inventou toda uma simbologia oficial estilo Non ducor duco (“não sou conduzido, conduzo”, lema da cidade de São Paulo) para valorizar iniciativa onde havia proletarismo industrial, que agorinha mesmo inventou a imagem da locomotiva do Brasil onde havia mera desigualdade regional, não haverá de inventar uma história de virilidade onde há... o Bambi?

Toda tradição - inventada - traz dentro de si um fundamento, uma base, uma idéia central. Nesse caso, o ponto que ainda precisa de revelação é o seguinte: o Bambi é valente! Ele é macho-alfa, é brigador, é difícil de caçar, é reprodutor, é durão. É o veado da cultura ocidental.

Pra começar, o Bambi (como o elitista São Paulo) tem sangue azul – é filho do Príncipe da Floresta, um líder em seu ambiente, e nasceu com o mesmo destino pela frente. No longa de animação original da Disney de 1942, baseado em romance alemão de 1923, além de lidar ainda jovem com a trágica morte precoce da mãe e de defender sua parceira de um macho rival o empurrando penhasco abaixo, ele enfrenta valentemente uma matilha de cães de caça, protegendo sua amada dos caçadores, e empreende uma fuga heróica depois de levar um belo de um balaço. Não bastasse, Bambi termina o filme cumprindo a hercúlea missão de garantir a sobrevivência da espécie, com sua veadinha dando à luz a um par de filhotes seus apesar de todas as dificuldades. Fato: de homossexual, o Bambi original não tem nada – muito pelo contrário.

O personagem já não fôra assim elaborado por acaso. Por toda a Europa e América do Norte, os veados e outros cervídeos aparentados como a corça são símbolos inequívocos de virilidade e esperteza. Capturar uma corça já tinha sido um dos doze trabalhos de Hércules, cabe lembrar, e a mitologia celta antiga considerava o cervo um animal sobrenatural. Concretamente, o que tornou os elegantes animais galhados objetos de valorização cultural são seu comportamento agressivo na época do acasalamento, sua rapidez inteligente e elusiva diante dos predadores e os desafios que estas características sempre impuseram aos caçadores.

No Brasil, e só no Brasil, temos o veado como símbolo de homossexualidade. Menos que meia verdade. Selvagens, os veados são animais territoriais e passam a maior parte do tempo em grupos do mesmo sexo - coisa de marmanjo. Quando as fêmeas entram no cio, os machos se enfrentam em batalhas sangrentas das quais emerge apenas um vencedor, a quem caberá a tarefa de passar os genes adiante junto às fêmeas até que a fadiga o impeça de continuar. Sabe-se inclusive que um veado nessa situação pode chegar a sofrer sintomas graves de inanição, pois seu ímpeto por brigar e copular é tão grande que ele se esquece de comer. A “fama de viado” do veado – perdoem-me, politicamente corretos – talvez exista por causa do comportamento dos machos perdedores (mas é problema deles e ninguém tem nada com isso), ou talvez por causa dos antigos Cigarros Veado, que por ter filtro branco eram exclusivos das mulheres, ou ainda por causa dos homossexuais da Praça da República, no Rio, que quando eram perseguidos pela polícia na década de 1920 "corriam como veados", segundo consta. Mas não importa: o veado "tem ampla aceitação na Europa e nos Estados Unidos", como diria a Susanita da Mafalda do Quino, e isso o qualifica a ser um digno símbolo são-paulino – coisa que, mundialmente, ele já é.

Já sendo, que seja. Os elementos da cultura ocidental que registram a ampla admiração do veado pelo homem são os mais variados. A heráldica européia (heráldica é a arte dos escudos de armas da nobreza) tem dezenas de brasões ornados por veados e por galhadas, como é o caso da cidade alemã de Dotternhausen, da suíça Thierachern (foto) e da francesa Raon aux Bois, entre inúmeros outros exemplos.

Achou meio coisa de franga? As garrafas de Jägermeister, bebida alcoólica alemã localmente conhecida como “cola-de-fígado” e do tipo que deve ser “consumida por lenhadores da Floresta Negra cumprindo pena de trabalhos forçados”, como disse meu irmão Mario, são ornadas com um imponente veado.

“Mas o teor alcoólico do Jagermeister é pequeno”, dirão os críticos, apenas 35%, “ainda é meio bambi”. Pois há um scotch single malt (portanto, bebida de macho, como disse novamente o Marinho), o Glenfiddich, que também leva um veado no rótulo. Glenfiddich, aliás, significa “Vale dos Veados”, o que nos faz perceber que, antes de um estigma social, o animal é inspiração da toponímia de inúmeros países, havendo lugares chamados Ilha dos Veados, Vale dos Veados, Rio dos Veados, Parque dos Veados ou Lago dos Veados, por exemplo, nas mais variadas línguas.

No esporte os exemplos são igualmente comuns. O Milwaukee Bucks, da liga americana de basquete, tem como símbolo um veado – buck é um veado macho adulto. O Kashima Antlers, da liga japonesa de futebol, também – antlers são as galhadas que os caçadores gostam de colecionar como troféus. Há exemplos em outras searas, também: a transnacional de equipamentos agrícolas John Deere traz um veadinho saltitante em seu logo corporativo, talvez por trocadilho com o nome (deer é a denominação popular da família dos cervídeos, em inglês); a Browning, fabricante de armas e artigos para caça, estilizou o veado em sua valiosa marca que simboliza a coragem do caçador.

Preparem portanto a imprensa da historiografia oficial que a história está prestes a se repetir como farsa. O bambi viril será registrado para a posteridade como nobre virtude de um clube de fidalgos, será celebrado nas ruas pela plebe ignara, será gravado em livros relatando conquistas e em bandeiras de torcidas, será cantado pela claque com fervor. Questão de tempo.

E do velho Vamp só o povo vai lembrar.

* * *

Não pude evitar pensar meio metro de tempo em como seria divertido se o Palmeiras tivesse o mesmo ímpeto inventor de tradições das velhas elites paulistanas:

“Os porcos têm orgasmos de meia hora!”;
“Acumulam proteína eficientemente!”;
“São inteligentíssimos!”;
“Na Itália são usados para encontrar trufas!”...

* * *

Agradecimentos fraternos ao Mario, ele vai saber o motivo.