terça-feira, 6 de maio de 2008

Uma Breve História do Futebol

Por Chico Garcia

Lá pelos longínquos mil quinhentos e setenta e tantos, a vida era uma difícil e doce sucessão de tragédias.

Se não havia guerra, os tediosos tempos de paz eram meses em que se precisava viver intensamente, livre para experimentar todo o gosto da fruta.

E deu que, entre cada porre e cada coito, o povo inflava uma bexiga de boi no sopro, dava um nó na ponta e saia a chutá-la pela rua. Quem estivesse de posse do artefato era o alvo principal - não só das botinadas (diga-se), mas dos socos, cabeçadas e até mesmo punhaladas ou martelos aremessados a esmo.

Aos poucos, o costume foi conferindo identidade aos grupos que o praticavam. Os criadores de ovelha se achavam mais durões do que os ferreiros, que por sua vez consideravam os vendedores de cebola um bando de fracotes. Ao passo que, alguns minutos após seu início, os jogos dividiam a multidão em dois times, um querendo bater no outro.

Assim nasceu o futebol.

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Por várias décadas, o que determinava vencedores e vencidos era a desistência de um dos lados - e na maioria das vezes os vencidos precisavam fugir a passos largos. Naturalmente, depois veio a existir o gol, mesmo que em formas ainda rudimentares.

Inflamados por rixas locais e crenças seculares (o ponto alto da temporada era a terça feira gorda, orgia de festividades que antecedia a quarta feira de cinzas), os jogos tinham um sério problema de ordem cívica: sempre acabavam em juramentos de vingança. Assim, de Henrique II a Jaime II da Escócia, ao longo de 150 anos, foram ao todo 11 proibições ao futball, praticado por nobres e camponeses, jovens e velhos; e velhos, diga-se de passagem, no alto de seus 45 anos e ainda sem lesões terminantes de guerra.

São inúmeras ordens de prisões e denuncias de tribunal que registram, por anos a fio, um duradouro confronto entre as autoridades e os amantes dos jogos de bola, considerados, por muitos aristocráticos medievais (e atuais) um bando de desordeiros, bêbados, ignorantes e briguentos.

Era uma forma de tentar manter a burguesia na linha, impedindo desordens semelhantes à “Tragédia de West Cheapside”, em 1539, iniciada numa partida entre os negociantes de pele contra os vendedores de peixe e, três dias depois, encerrada com cavaleiros e nobres se atirando à multidão com lanças em punho, enquanto um arqueiro ensandecido protegia o gol disparando flechas.

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Por mais débeis e ilegais que fossem os diversos jogos dos quais derivam o futebol moderno (alguns deles muito parecidos com o Rugby), as pessoas o amavam, assim como o amam hoje. Por isso, suas proibições nunca foram levadas a sério - e os torneios ilegais borbulhavam ao longo de toda a Ilha da Bretanha, contando até com a participação de “equipes” formadas por oficiais da lei e generais de guerra.

Uma documentada confusão conhecida como "A Batalha de Ruyslippe", evidencia que casos de morte eram muito comuns e apeteciam ao publico, pois eram formas menos elitistas de exposição ao sangue (ou você acha que um camponês endividado tinha cavalo e armadura para participar de duelos?).

Contam os pergaminhos menos preservados, alguns com manchas de vinho, que um tal Roger “The Red” Ludford, lavrador de família camponesa com extrema competência no cultivo das batatas roxas, era o maior brucutu da idade média. Ele era tão temido que nunca houvera quem derrotasse a sua facção de coração, os proprietários rurais do condado, notórios arruaceiros beberrões que se reuniam para tomar porres na Taberna de Arthur.

Certo dia o time dos lavradores acabou por enfrentar a turma dos alfaiates malfeitores de Woxbridge, maiores bad-boys da época. Foi então que centenas de camponeses, rameiras, comerciantes, padres e até soldados aglomeraram-se aos montes, todos em volta do antigo pasto dos Suassen (o de maior capacidade de todo o condado), apenas para presenciar o confronto épico entre as duas facções.

Poucos se deram o motivo e o trabalho de imortalizar os vencedores num jogo provido de tamanha brutalidade, mas um registro de tribunal datado do mesmo ano de 1576, que ordena a prisão de cerca de meia dúzia de transgressores, encontram-se as seguintes acusações:

“Em Ruyslippe, Arthur Reynolds, lavrador e mais cinco outros pequenos proprietários rurais, todos do vilarejo, e mais Nicholas Martin, Richard Turvey e Thomas e Martin Darcy, todos alfaiates de Woxbridge, estão formalmente acusados de transgressão às leis da coroa e devem responder por briga seguida de morte, ocorrida durante uma reunião ilegal de outra centena de desordeiros desconhecidos para praticar um jogo ilícito chamado de futebol(...)

A inquirição do magistrado provincial - post morten ocorrida em Soputhemys perante o corpo de Roger Ludford – apurou com o veredicto dos jurados que Nicholas Martin e Richard Turvey estavam a jogar futebol contra as facções de Ruyslippe quando o dito Roger Ludford e um Certo Simon Maltuns, da mesma paróquia, entraram na disputa e partiram para cima de Nicholas Martin com ameaças verbais, quando esse respondeu que tudo seria decidido ali mesmo(...)

Certo momento, Roger Ludford partiu em direção ao rival que possuía a bola com a intenção de atingir ambos, jogada após a qual Nicholas Martin desferiu uma punhalada no peito de Roger Ludford com o braço direito, atingindo-o com um ferimento mortal. A vitima ainda veio a sofrer outro golpe duro de Richard Turvey, morrendo em um quarto de hora, da forma pela que Nicholas e Richard mataram desta maneira criminosa o dito Roger”.

Claro que elas nunca foram devidamente apuradas e diversas outras mortes ou atentados criminosos ocorreram misteriosamente, acometendo certos envolvidos na confusão e alguns que não tinham nada a ver com a história. Foram dias de nuvens vermelhas, lutos, duelos e disputas que até hoje fazem com que um Ludford olhe torto para qualquer Martin ou Turvey por aquelas bandas.
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Sobre o prometido ensaio Uma Breve História do Futebol, confesso que desisti por aqui. Consta que de 1576 pra cá as regras mudaram (ou foram criadas, como prefiram), o jogo virou esporte, se profissionalizou e agora é praticado por qualquer mariquinha de todos os credos e cores.

O futebol de hoje é cheio de fair plays irritantes e firulas previsíveis. Ganhou plasticidade e beleza de encher os olhos, mas perdeu parte do ideal implícito em sua gênese: usar a violência e extravasar a raiva em seus semelhantes, sejam eles pobres, ricos, fortes ou fracos, porque a vida é curta e vence o mais esperto.